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domingo, 27 de junho de 2010

João Saldanha e os Crioulos

Nestes tempos politicamente corretos, sentimos falta de pessoas diretas, sinceras, transparentes, que, como fazia sempre João Saldanha, digam o que pensam e realmente pensem o que dizem. Veja a entrevista no link lá embaixo, sobre a opinião do João sobre cabeleira black power no futebol. Tanto o João era sincero que, depois de classificar o Brasil para a Copa de 70 com a melhor campanha do Brasil em todas as eliminatórias, foi detonado pela ditadura porque recusou-se a obedecer um "palpite" do General Médici para a convocação do Dadá Maravilha. Na época, se um general dava um palpite, era prudente acatá-lo. Zagallo foi mais prudente e mais político, manteve a base das "Feras do Saldanha" e convocou o Dadá, que não tinha nada a ver com a história e nem jogou na Copa. E no fim, a "cassação" do João acabou ficando mais coerente com sua biografia.

Naquela época, Pelé era tudo: rei, gênio, crioulo, só não era afrodescendente. Aliás, este é um termo cientificamente equivocado, pois nós, chineses, suecos, zulus ou guatemaltecos, somos todos afrodescendentes, com muito orguuuulhooo, com muito amoooo-or.. Uns saíram mais cedo do nosso berço comum africano, outros mais tarde. Na boca do João, falar negão ou crioulo era carinhoso. Hoje ele seria atacado pelo patrulhamento. Pois, claro, até afrodescendente, dependendo do contexto e do preconceito de quem fala, pode ser pejorativo, e um negão de responsa ou de tirar o chapéu são termos claramente elogiosos. Temos que mudar o contexto e as mentes. Patrulhar as palavras só leva ao entrincheiramento. Meu filho tem um amigo, o Anderson, que é preto, crioulo, afrodescendente, negro, enfim, tem bastante melanina na pele e é um sujeito grande e forte, e estes são são os motivos pelos quais ele atende por Anderson Negão, ou simplesmente Negão. Seria sinal de preconceito se a turma de amigos deixasse de chamá-lo de Negão para serem politicamente corretos e imbecis.

Então, vamos deixar de frescura!

http://www.youtube.com/watch?v=fRzMKb7JvEg&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=c6VLhobB3mk&feature=related

sábado, 26 de junho de 2010

Dormir, acordar

Acordei. Abri os olhos, só um pouco: uma pálida luz além das cortinas. Decidi que era ainda muito cedo para levantar-me e fechei os olhos novamente. Pensei que dormiria de imediato, mas não foi o que ocorreu. Permaneci desperto por trás das pálpebras fechadas, mas, embora acordado, nenhum pensamento passou por minha mente, chamando minha atenção para correr por campos, examinar estratos bancários ou admirar um belo corpo imaginário de mulher. Minha atenção era como alguém de pé no ponto de ônibus à beira de uma rua deserta, em que não passa nada nem ninguém, esperando uma condução que nunca chega.

Abri os olhos. Busquei o habitual som dos bem-te-vis e sabiás madrugadores, mas pareceu-me que eles haviam deixado para acordar mais tarde. Decidi levantar-me. Coloquei meus pés nos chinelos e virei-me em direção a Isabel. Seu corpo inflava e desinflava-se suavemente sob o lençol, de costas para mim. No outro quarto, as crianças ressonavam baixinho. Paz. Um forte cheiro de terra, como o que recende aos primeiros pingos de chuva, permeava os cômodos da casa, espesso como creme de leite.

Fui até o banheiro, mas não senti nenhuma vontade de urinar. Lavei, então, o rosto e comecei o ritual de barbear-me. Molhei o pincel e espalhei o creme em lentos movimentos circulares, fazendo surgir aos poucos a espuma grossa e agradável. Achei por bem começar a deslizar o barbeador primeiro pelo lado esquerdo do rosto. Dei-me conta de que sempre, até então, começara a barbear-me pelo lado direito. Intrigou-me a idéia de nunca até então, havia-me permitido, ou melhor, havia sequer cogitado a possibilidade de exercer a liberdade de começar a barbear-me primeiro pelo lado esquerdo.

Enxagüei o rosto, lavei o pincel e o aparelho e espalhei a loção no rosto. Senti a sensação de frescor na pele, mas não consegui sentir o perfume, só o cheiro de terra. Dei-me conta então que, apesar do lusco-fusco no banheiro, havia-me barbeado com perfeição sem sequer cogitar em acender a lâmpada sobre o espelho. Mirei meu rosto refletido. Ultimamente vinha reparando, a cada manhã, o surgimento de uma pequena mancha aqui, o aprofundamento de um sulco ali, a bolsa sob os olhos a cada dia mais visível, um novo pelo nascendo da orelha... Hoje não. Hoje me via diferente. Parecia ver no espelho meu verdadeiro rosto, nem jovem nem velho, nem ingênuo nem desiludido, nem alegre nem triste. Fiquei fitando meu próprio olhar por longos momentos. Fui despertado por uma sensação fria e úmida em minha coxa esquerda, seguida por um hálito quente e um resfolegar familiar. Olhei para baixo e agachei-me para acariciar e abraçar Argos, meu pastor alemão. Quanta saudade e alegria! Seu pelo estava perfumado e sedoso como nunca. Abracei-o com ternura, com não fazia havia trinta e poucos anos.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Trem

Na Nova Friburgo de minha infância, o trem era a alma, o horário, a maior personalidade da cidade. Tudo parava para ver e escutar. E ele desfilava pela avenida e por sobre a calçada da praça, lento, majestoso, como uma escola de samba completa, chamando aplausos e brilhos dos olhares infantis, meus e outros. O trem não passa mais. Passava para Bandeira, Villa Lobos, Goulart, Milton Nascimento.
Ao trem e àqueles que paravam para vê-lo passar.

Todo dia de manhã
café com pão,
café com pão,
café com pão,
café com pão.
Que trem é esse?
Pra onde vai
tão pontual, tão sempre igual?
Sem cancela que atrapalhe,
sem saudade que acelere
ou tristeza que lhe pare?
Da montanha, vai pro mar,
sobe serra, desce serra,
vê passar moça bonita,
o sol subir, o sol descer,
pára nunca pra pensar,
pra sentir ou para amar.
Só existe pra chegar.
E tá chegando,
vem chegando,
e chegando,
chegando,
ando,
dó.
Ufa... Parou.
Olha pra trás.
Todo mundo já desceu.
Volta? Não tem.
Trilho? Mais não tem.
Só silêncio...
Só silêncio...
Só silêncio...

terça-feira, 22 de junho de 2010

Sobe?

Uma possível maneira de se contar a história da civilização seria através da história das profissões. Umas surgem, têm seu apogeu, duradouro ou fugaz, e depois declinam. Outras se mantêm firmes, sempre renovadas e necessárias, incluindo-se aí a mais antiga de todas. Passeador de cães e técnico de informática a domicílio são exemplos de profissionais surgidos recentemente que hoje se tornaram indispensáveis. Por outro lado, o comprador de garrafas de vidro, este pioneiro da reciclagem, desapareceu. Nunca mais vamos “saber quem tem mais garrafa vazia pra vender”, e a expressão vai talvez se extinguir junto com a profissão. Hoje vi um profissional que se encontra seriamente ameaçado: um amolador de facas. Talvez a profissão que mais vá deixar saudades, em especial nas esposas de maridos infiéis. Ainda mais uma vez ele me alegrou, exibindo seus dotes musicais e tirando melodias da lâmina de aço curvada com destreza contra a pedra de amolar - apesar de hino do Flamengo fazer parte de seu repertório.

Outra que parece encaminhar-se para existir apenas na lembrança dos mais velhos é a de ascensorista, essa profissão empolgante, feita de histórias cabeludas sem final e de piadas engraçadíssimas sem princípio. No prédio em que trabalho já suprimiram quase todos. Em alguns prédios, já se digita o andar antes mesmo de se entrar na fila do elevador. Nada de pigarrear na fila e empostar a voz para que “décimo terceiro” soe claro e másculo. Alguns elevadores falam com você, pedem para você liberar a porta, dão bom dia, mas a figura amiga do ascensorista vai deixar saudades. Muito embora sua presença nunca tenha sido suficiente para acalmar alguns radicais da claustrofobia. Conheço um senhor de 60 anos que vai ao cardiologista (eu, no caso) subindo 14 andares de escada. Semana passada ele me perguntou por que eu nunca lhe pedi um eletrocardiograma de esforço. Muitas de minhas pacientes idosas passaram a se sentir inseguras no transporte vertical sem a presença do ascensorista. Algumas me confidenciam que se sentiriam mais seguras na companhia tranqüilizadora deles em caso de pane entre dois andares, “apesar de ser mais um para consumir oxigênio”, ponderou uma. Sem falar no medo que sentem da porta automática. Estas, hoje, são deslizantes, mas já foram sanfonadas, algumas impecavelmente douradas e polidas com Silvo ou Kaol. Eram um terror! Amputaram muitos dedos distraídos, alguns narizes proeminentes e desencorajavam sexo no elevador.

Agora, me distraio vendo os passageiros tentando imaginar a que altura fica o sensor de presença que impede que a porta avance sobre seus ombros. As opiniões divergem. Meia altura? Na altura das orelhas? Toda a altura da porta? Aquele suave piiiii que soa baixinho quando estamos no limbo do elevador não transmite qualquer segurança à maioria dos passageiros, quando estes percebem a inquietante ausência do piloto no espaço defronte aos botões. Então, muitos deles tomam de assalto aquele cubo como um bando de sem terras invadindo um latifúndio, muitas vezes, sem esperar que os que estão dentro saiam primeiro. Tenho algumas teorias que explicam este comportamento aparentemente pouco civilizado:
Os ouvidos idosos não conseguem perceber o apito de altíssima freqüência do sensor, e, portanto, nem desconfiam da existência de um sensor;
Alguns passageiros sofrem de bursite aguda, que doeria de maneira inimaginável ao menor toque, e eles não estão dispostos a escorar uma porta de aço com o ombro;
Outros imaginam que serão triturados, cortados ao meio, ou pior, capturados vivos e arrastados prédio acima, deixando um membro ou uma víscera em cada andar;
Ou então é falta de educação pura e simples.

Percebi ainda que este comportamento nunca ocorre na presença do ascensorista. Então, vamos render nossas homenagens a este bravo profissional, nosso companheiro nos altos e baixos, depositário discreto das indiscrições humanas, exemplo de simpatia e da capacidade de se manter alerta em qualquer situação, que vai aos poucos nos deixando. Sua voz educada, que nos atualiza sobre os resultados da última rodada e nos alerta gentilmente “Olha o degrau!”, em breve não será mais ouvida.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Toy Story III

Toy Story III – 1


Toy Story III, independente de ser um ótimo filme de animação, é uma grande história, porque aborda com sensibilidade e humor grandes temas humanos: lealdade, morte, o fim da infância, a chegada à idade adulta e a saída da casa dos pais, onde desfazer-se dos brinquedos é o rito de passagem.

Uma outra leitura: além dos brinquedos, também os pais são tomados por sentimentos de obsolescência quando os filhos vão para a universidade e deixam a casa paterna, o que na cultura americana são coisas quase sempre simultâneas. Assim como os brinquedos, os pais sentem-se abandonados e desnecessários, pelo menos após pagarem as últimas mensalidades da universidade. Para nós, pais, é um momento de passagem. Nossa função inata de transmitir o código genético herdado e aperfeiçoado desde o início da vida sobre o planeta, e de cuidar dos filhos até que eles mesmos estejam em condições de passá-lo adiante, está cumprida. Do ponto de vista estritamente biológico, tornamo-nos tão descartáveis quanto brinquedos velhos. Somos então confrontados com questões menos atávicas e mais subjetivas: que valores temos como seres humanos? Que diferença fazemos para a sociedade como um todo? Somos ainda úteis ou não acrescentaremos mais nada permanecendo vivos no mundo?

Assim como para os brinquedos, estas questões podem nos ser perturbadoras se então nos avaliarmos como inúteis. Pode ser, porém, um momento de libertação. Desincumbidos de nossa missão biológica, poderemos fazer, enfim, o que bem entendermos de nossas vidas. Assim como quando éramos solteiros, só que com menos hormônios, mais rugas e, se tivermos tido sorte e sucesso, mais dinheiro e a mesma quantidade de cabelos. Ou então, se não tivermos nada mais criativo para fazermos, temos a saída de emergência de fingir que estamos começando tudo de novo e nos fazermos indispensáveis para nossos netos. Então, assim como os brinquedos do filme, vamos recomeçar tudo com uma nova geração de crianças. Penso que pode ser uma ótima opção se for realmente uma opção, e não a única e desesperada saída para escaparmos de nossa imagem no espelho.

Toy Story III – 2

No momento mais hilário de Toy Story III, Buzz Lightyear, depois de resgatado das forças do mal, é acidentalmente “reiniciado” em sua pré-programação latina. Surge uma versão galante do bravo astronauta, cavalheiresco e sedutor, a exibir-se para a cowgirl Jessie. Indo além (ou para o infinito e além) das óbvias intenções mercadológicas para o público latino, os americanos parecem estar se dando conta de que perderam alguma coisa importante quando empurraram os mexicanos para o sul do Rio Grande.

Antes mesmo de se tornarem independentes, eles já haviam empurrado os franceses para o norte do São Lourenço. Inúmeros filmes, depois da segunda guerra mundial, tentaram mostrar os europeus, e em especial os franceses, como esnobes arruinados tentando manter a pose diante de americanos endinheirados, simpáticos e modernos, porém sem pedigree, mal disfarçando o complexo de vira-latas. Algo como as emergentes da Barra diante das tradicionais e dilapidadas socialites do Rio de Janeiro.

Os mexicanos vão, por seu lado, silenciosamente retomando o território que vergonhosamente lhes foi amputado na Guerra Mexicano-Americana, e avançando além. A vigilância, as cercas e até os muros erguidos recentemente na fronteira com o México não têm impedido a entrada de hordas de vizinhos do sul (nem de drogas ilícitas). Cidades como Los Angeles, Las Vegas, Sacramento e San Francisco, que mantiveram seus nomes originais como que esperando serem reconquistadas, vão sendo mais e mais ocupadas por falantes do espanhol.

Depois de incorporarem judeus, italianos, irlandeses e muitos outros imigrantes, e de admiti-los como parte do cerne de sua sociedade e da sua cultura (os negros parecem compor uma outra nação dentro da nação), agora são os cucarachos que contribuem com suas cores e temperos para o grande caldo cultural norte-americano. Quando Richard Gere achou que a vida andava sem graça, foi para Jeniffer López que ele disse: “Baila Comigo”. Na gelada e fictícia South Park, Colorado, Cartman, Kyle, Stan e Kenny, discutem, durante a semana latina da escola, se devem pronunciar “djéniffer” ou “réniffer” López. Antonio Banderas faz o charmoso e heróico gato de botas em Schreck II. Salsa, mambo, temperos, quadris curvilíneos e malemolentes, devoção a santos e sexo destituído de culpa, todos vão inexoravelmente avançando de braços dados para latitudes mais altas, liderados por divisões de blindados armadillos*. Quem sabe, um dia, antas e capivaras atravessarão a ponte do Brooklyn e desfilarão em triunfo por uma Manhattan subjugada?



* O armadillo é nosso velho e conhecido tatu. Até recentemente, viviam exclusivamente nas Américas Central e do Sul. No século passado, iniciaram uma expansão de seu território em direção ao norte, e hoje já fazem parte da fauna de diversos estados norte-americanos. Não, eles ainda não estão esburacando os jardins da Casa Branca.