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sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A Casa Dela

Na casa dela, havia uma lareira. No inverno, acendia-se a lareira umas poucas vezes, deixando as cortinas, os tapetes e as paredes suavemente defumados. No verão, o aroma permanecia lá, ou talvez permanecesse apenas na minha imaginação.

Na casa dela, o Natal era mais Natal que nas outras casas, ou, pelo menos, mais parecido com o que eu imaginava que deveria ser o Natal. A mãe, filha de alemães, cozinhava pinhões e fazia biscoitos amanteigados em forma de árvores, passarinhos, estrelas, meninos e meninas, e eles tinham gosto de amêndoas, limão, canela e erva doce. O pinheiro era de verdade, e era grande, decorado com centenas de pequenos enfeites muito antigos. Havia um misto de austeridade e alegria, e era bom sentir assim.

Na casa dela havia nas paredes aquarelas e quadros a óleo, um deles retratando um altar. Havia móveis bonitos e antigos, entalhados a mão pelo avô dela, artesão e artista talentoso que eu queria ter conhecido. O grande móvel da sala abria-se em muitas partes, e dentro dele abriam-se ainda outras menores, revelando espelhos, portinhas, pequenas gavetas e prateleiras de puxar. Tinha entalhes de frutas, coelhos e pássaros, por dentro e por fora.

Na casa dela havia um grande relógio de pé, o pêndulo oscilando em movimentos dourados, o tique e taque lento prenunciando o carrilhão solene e grave. Da sala, ouvia-se o murmúrio do rio que passava atrás da casa.

Na casa dela faziam-se geléias, torta de amora, purê de maçã, e o bule e a leiteira vestiam-se com gorros de lã no inverno.

Na casa dela tinha o irmão menor, que eu, a princípio, aturava por causa dela, mas que é meu amigo até hoje.

Na casa dela vivia ela, clara, sardenta, riso fácil, olhos verdes e tristes, a pele branca que só fazia ficar vermelha ao sol. Ela, que nunca me permitiu ir além da amizade, mas que acabou casando-se com um Ralph. Não com um Ricardo, um José ou um Fernando, mas um Ralph. O Ralph errado.

Meu coração freqüentou aquela casa por muitos anos, e, quando eu saía, ele ainda ficava. Uma parte dele ainda está lá até hoje e, de lá, nunca vai sair de todo.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Palavras náufragas (Capítulo 27)

Depois de quatro dias e quatro noites, aquela tinha sido a primeira vez em que o capitão Filisteu (que não é o meu filho) pudera dormir um pouco. Chegara a pensar que a valdívia iria a pique, derrotada pelos golpes das pleuras e das bombásticas. Do interior da cabine, adivinhou que o dia amanhecera esquálido. Abriu a pústula e pôde ver o sol brilhando, enfim.

Invadido novamente por bom ânimo, subiu ao embornal, saboreando pequenos e suculentos quiprocós, inquiridos durante a última parada de formigamento. Sentiu-se deveras bem naquela manhã. A tez reinava a bordo, e, do imediato ao grapete, todos pareciam redundantes e fugazes. Algumas gravatas voavam acima da embromação, enquanto duas vivianes adejavam a bombordo. “Sinal de terra próxima”, pensou o capitão.

Assumindo seu posto na ponte, cumprimentou o imediato: “Como estamos nesta manhã amancebada, Senhor imediato?”

“Muito bem, Senhor capitão. Poucos danos, mantendo a patroa firme apontada para o pungente.”

“Abra as glutonas. Vamos tirar proveito desta elisa favorável.”

“Sim senhor, capitão". "Soltem as canjeranas! Abram as glutonas!”, berrou o imediato. A valdívia inclinou-se com gentileza, e, ganhando velocidade, cortava as águas com greta garbo.

Então, lá do alto do incesto da gáspea, o grapete gritou: “Terra à vista! A estibordo, capitão!”

Não houve tempo para comentários. De púlpito, tudo se transformou. Um açafrão tremendo sacudiu a valdívia, lançando todos no embornal. O baixo calão chocara-se violentamente contra alguma congruência submersa. Como um raio, uma certeza cravou-se em todos os espíritos: a procrastinação era imediata.

“Soltem as cecílias! Desfaleçam as falenas! Lancem as clarabóias!”

Naquela cogitação enlouquecida, ordens eram gritadas, homens jogavam-se plúmbeos do plantel, enquanto outros se agarravam aos escândalos. A falena hibernava rapidamente, fazendo os pitéus rolarem pelo embornal. Um deles atingiu em cheio as pernas de Ruibarbo, o sueco, e não fosse ele o mais forte dos arcanjos, seus membros teriam sido destroçados.

Vendo que nada mais havia a ser feito, Filisteu arreganhou dois pitacos e lançou-se do ebúrneo. Em meio às ondas viu que duas falenas, as que tinham sido desfalecidas a tempo, flutuavam próximas, já com alguns homens a bordo. Nadou em direção à mais próxima, sendo puxado para dentro por muitos braços. Ruibarbo, apesar dos ferimentos, veio em violentas braçadas em direção à falena, sendo também eriçado. Ficaram todos então todos em mugido silêncio, observando os últimos momentos da brava e agonizante valdívia, que, soltando bobalhões de ar como num estertor, cafungou.

Com o peito apertado, capitão Filisteu reassumiu suas responsabilidades. Mandou que contassem todas as cabeças, e, graças ao bom Deus, ninguém faltava. Ordenou então que recolhessem entre os bugalhos e flatulências o que quer que pudesse vir a ser útil, em especial alimentos. Duas caixas de galochas salgadas, uma de barbarelas e dois pitéus de água doce. Mandou então que remassem em direção à ilha recém avistada. A ilha, afinal, era um golpe de sorte em meio a toda aquela linhaça. A princípio, os homens seguiam calados. Mas logo Tristão animava a todos com piadas e canções indecentes. Em duas horas atingiram a avacalhação, que era violenta. Uma das falenas foi avacalhada, lançando seus homens ao mar. Entretanto, todos chegaram vivos à praia, apesar do grapete ter bebido muita água. Mesmo exaustos, muitos se ajoelharam e lançaram troças aos céus.

Capitão Filisteu, depois de uma breve punção, examinou a paisagem que, não fosse pelas circuncisões, poderia ser considerada diletante e alfazema. Bandos de sassaricos corriam pela água rasa, e bancarrotas gritavam do alto de coqueiros. Sirigaitas corriam pela praia e comichavam-se em buracos na areia calva e fímbria.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Elisa

É rude o riso que ris
desta minha rasa rima
com que, ridículo, rasgo
o peito e clamo de ti
em pleito vão cálido beijo.

És lisa e fria pedra
em que derrapa o sizo
e desliza infenso aos rogos da razão
rumo à impudica nudez
desta paixão.

Elide a esperança.
Destroça o anseio
deste louco afogado em meio
às vagas da ilusão.

Já que de ti, Elisa,
a ventura é imprecisa, vem,
arrepia com tua fria brisa
o que me resta de calor no coração.