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domingo, 14 de novembro de 2010

O Rival


Publico aqui o conto "O Rival" que saiu ontem no caderno Prosa e Verso de O Globo. O conto está classificado entre os 10 finalistas do concurso Contos do Rio do jornal, e teve como tema a foto escolhida pelos leitores, de autoria de Márcia Folleto. O resultado sai daqui a duas semanas, no dia 27 de novembro.


Fofinho. Não era adjetivo, era substantivo. Fofinho era o nome do cachorro de Eulália, a noiva de Rodrigo. Um pequeno poodle branco, ou pior: branquinho. Nos últimos treze anos, ele era o único a dividir com Eulália o pequeno apartamento alugado. Vigilante, bastava Rodrigo abrir a porta do elevador para que Fofinho disparasse a latir contínua e insistentemente, tarefa na qual persistia com canina diligência por longo tempo, mesmo depois que Rodrigo adentrava a sala de Eulália. Como se sua missão na terra fosse irritar o moço. Rodrigo odiava Fofinho só um pouquinho menos do que amava Eulália, e só o amor que tinha por ela lhe dava forças para suportar aquela irritação em quatro patas.

Eulália era daquelas moças que, não se sabe por quê, são esquecidas pelos caprichosos deuses do amor. Apesar da devoção por Santo Antônio, herdada da mãe portuguesa, via as amigas e colegas noivarem, casarem e até se separarem, sem que ela encontrasse sua cara-metade. Não que fosse desprovida de predicados, muito pelo contrário. Tinha o temperamento vivo, sem ser vulgar, e os olhos ternos e curiosos, com um brilho mais visto em adolescentes que em mulheres de trinta e cinco. Fisicamente tinha também muitos encantos, coroados por uma bela cabeleira negra, que, no mais das vezes, trazia contida, como que aguardando quem lhe libertasse de uma só feita o coração e os cabelos. Muitas vezes era a custo que sublimava uma incômoda sensação de que a vida lhe era injusta. Expiava essas ideias amargas nas orações ao santo, que buscava, quando mais jovem, apenas para reencontrar objetos perdidos, mas a quem, cada vez mais, pedia que não a deixasse perder a esperança de um amor correspondido.

Um santo pode, aos céticos, parecer mouco, mas, a seu tempo, não deixa desassistida a oração de quem crê. Numa fria tarde de junho, Eulália comprimia-se entre os que buscavam um pãozinho bento na festa do casamenteiro de Pádua, no convento que encima o Largo da Carioca. Sua mão estendida alcançou o último pão da cesta junto com uma outra mão, esta masculina. Olhou surpresa o dono daqueles dedos que roçavam os seus: um moço que lhe pareceu simpático e de olhar sincero. Coração aos pulos, dividiu com ele o pão, pressentindo naquilo a mão milagrosa do santo. Desceram juntos as escadas até o Largo e combinaram um novo encontro.

Desde então, Rodrigo e Eulália namoravam. Quando ela o convidou ao seu apartamento na Glória, Rodrigo foi apresentado a Fofinho, e chegou a dizer, para agradá-la, que ele fazia jus ao nome. Não se deu conta, a princípio, que tinha ali um rival disposto a vender caro a perda do posto de primeiro no coração da moça. Mais tarde, no sofá, quando suas mãos buscavam conhecer melhor a anatomia da amada, foi surpreendido, sem um rosnado de aviso, por uma feroz mordida em sua mão esquerda. Sangue pingando, luzes acesas, antisséptico e curativo, fim de clima. A noite promissora morreu ali, mas uma rivalidade feroz estava só nascendo.

As intenções de Rodrigo, com o tempo, revelaram-se as melhores. Funcionário público recém-empossado, deixara a casa dos pais em Vassouras para morar sozinho no Rio. Aguardava a confirmação no cargo, que viria ao fim do estágio probatório, para então pedir a mão de Eulália. Por amor, suportou os rosnados e latidos de seu rival canino. Chegou a pensar em canicídio ou em um ultimato, mas Eulália era tão apegada ao cãozinho que ele temia pôr a perder o amor da noiva. Aguentou firme, inquirindo, sempre que dava com um veterinário, a expectativa de sobrevida de um poodle de treze anos. Mas, apesar do reumatismo e da catarata, Fofinho também aguentava firme.

Um dia, porém, a natureza fez valer suas regras inexoráveis: depois de uma pneumonia, Fofinho bateu as botinhas de tricô. Por coincidência, isso se deu apenas uma semana antes da efetivação de Rodrigo, com a correspondente elevação nos vencimentos. Eulália verteu lágrimas de tristeza pela perda do velho amigo, mas logo se animou com os preparativos para o casório.

Em três meses, casavam-se na igreja do mesmo mosteiro onde o santo de devoção lhes servira de cupido. Estavam radiantes, ela com o rosto lindamente emoldurado pelos cabelos negros em contraste com o branco do vestido. Ele, feliz e realizado, surpreendia-se impactado com a beleza da noiva.

Finda a cerimônia, no alto das escadarias, noivos, padrinhos e convidados expandiam-se ruidosos na habitual alegria de cumprimentos e fotos. Moças solteiras, desejosas de igual ventura, agrupavam-se à espera do voo do buquê. Aos poucos, porém, cada olhar foi atraído para o alto, e o alvoroço foi gradualmente amortecido: o sol ia sendo encoberto, naquela tarde de céu até então imaculadamente azul. Uma enorme nuvem, muito branca e perfeitamente redonda, como uma gigantesca e maciça bola de algodão, pairou ameaçadora sobre o Largo da Carioca, causando uma vaga sensação de desconforto. Então, saído dela, um único raio riscou o céu, no exato instante em que Rodrigo sentiu uma dor lancinante na mão esquerda.

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