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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Mão de Eurico

Eurico nasceu normal. Cresceu por igual até os vinte anos, quando quase parou de crescer. Quase, porque sua mão direita continuou crescendo. Tinha ambições políticas, mas abandonou-as por razões óbvias. Na solidão do banheiro, começou a achar seu pênis pequeno. Tinham medo de cumprimentá-lo. Passou a viver recluso. Numa crise de desespero, empunhou um machado para decepar a aberração, mas a mão esquerda sentiu-se insegura, e, reverente, negou-se a amputar a irmã maior. Ficou cinco dias sem comer, mas acabou sendo dominado pela conformação. Um dia, viu-se compelido a escrever sobre sua angústia. Descobriu-se escritor. Fez sucesso. Usava caneta Pilot grossa nos originais. Aos poucos, porém, percebeu que a mão escrevia idéias que não eram bem as suas. Mas ela escrevia tão bem...

domingo, 12 de dezembro de 2010

O Serrote de Deus

Ele estava em Brasília, no aniversário de Sílvia, irmã de seu amigo Pedro Luiz. Havia viajado até o Planalto Central para passar a Semana Santa hospedado na casa deles. A festa ia comum e tranquila, até que, como que avisados por uma senha secreta, todos pararam de conversar e um culto improvisado começou na grande sala do apartamento na Asa Sul. Surgiu um violão, entoaram-se belos cânticos, muito bem ensaiados. Porque na igreja católica, que freqüentava no Rio, não se cantava tão bem assim? Depois que alguém deu graças por mais um ano de vida da moça e pelas bênçãos que continuamente caíam sobre aquela família e seus amigos, pediu-se que cada um dos presentes desse o seu testemunho. Que falassem de como Jesus havia entrado em suas vidas e as transformado profundamente. A palavra ia sendo dada a cada um daqueles jovens que, emocionados, às vezes em lágrimas, relatavam como a conversão havia mudado radicalmente seus rumos. Meu Deus, ele pensou, e teve medo por ter pensado aquilo: como pessoas tão jovens e aparentemente comuns poderiam ter vivido vidas tão cheias de tristezas até tão pouco tempo atrás? Que pecados inomináveis poderiam ter cometido? Que sofrimentos indizíveis poderiam ter atormentado suas almas mal saídas da infância? E, no entanto, todos se mostravam emocionados, muitos chegando a lágrimas que lhe pareceram sinceras. Que diria quando chegasse sua vez? Mentiria confessando uma conversão que não havia ocorrido, pelo menos não daquela forma drástica e espetacular? Diria que havia sido invadido pelo Espírito Santo ao se ajoelhar implorando a misericórdia divina?

Na verdade, ele bem havia tentado. O Evangelho que lhe havia sido dado por Pedro Luiz tinha passagens grifadas e numeradas, que dirigiam o leitor a se dar conta da grandeza do amor de Deus, que havia enviado Seu filho querido para que Este trouxesse sobre Si os pecados de toda a humanidade. Então, entregado-O para ser torturado e sacrificado, nos havia livrado do peso de uma culpa ancestral. Talvez valesse a pena tentar, pensara. Sua vida não era exatamente miserável, mas o longo e doloroso processo de separação de seus pais, diante do qual se vira impotente, as dificuldades financeiras que se seguiram, as agruras próprias da adolescência se somavam para configurar uma sensação de inadequação e incerteza. Então, uma noite, por trás da porta fechada de seu quarto, recitou as orações e os pedidos infalíveis que aquele Evangelho comentado lhe instruía a fazer, como quem se deixa fechar na caixa do mágico, só a cabeça de fora, permitindo-se ser serrado ao meio, sem ter certeza absoluta de tratar-se apenas de um truque. Não crendo, mas dando uma chance à credulidade, uma chance de sentir os dentes do serrote lhe abrindo a alma ao meio para que Jesus entrasse. A própria idéia de um truque mágico já o fazia temer que nada de fato ocorreria. Uma vez sentara-se diante de um hipnotizador, desejando sinceramente ser hipnotizado, porém duvidando muito de que algo pudesse ocorrer, como de fato não ocorreu. Vira várias pessoas se deixando hipnotizar, assim como vira uma vez em um templo evangélico mulheres e homens de aparência absolutamente séria e confiável sendo possuídos pelo Espírito Santo e falando línguas ininteligíveis. Seria tão mais fácil se viesse a se tornar um crente, um crédulo. Então ajoelhou-se, orou do mais fundo que pôde de sua alma. Apertou os olhos tentando espremer uma lágrima que teimava em não sair, buscou arrancar de dentro de si um sinal de entrega ao Todo Poderoso. Ficou ajoelhado por longos minutos esperando, não sem algum medo, que o serrote de Deus lhe abrisse a carne e o espírito.

Nada.

Aquele Nada o deixara abandonado na mais pura solidão, sem ninguém que lhe pegasse pela mão e o levasse pelos caminhos da virtude até o paraíso. Se, dali em diante, viesse a viver uma vida virtuosa, não seria por ter-se tornado um zumbi de algum deus. Se viesse a viver uma vida de enganos e mancadas, teria que arcar sozinho com a responsabilidade de seus atos, sem culpar qualquer satanás nem ninguém, deste ou de qualquer outro mundo.

De início, a solidão do Nada o deixara amedrontado e confuso. Aos poucos, no entanto, começou a sentir-se de alguma forma mais forte, mais capaz. Mais compadecido e solidário com outras solidões. Paradoxalmente menos só.

Quando finalmente lhe passaram a palavra, não teve coragem de mentir. Deu parabéns à aniversariante, disse como se sentia sinceramente feliz em estar na presença de amigos, e passou a palavra adiante. Não soube interpretar bem os olhares que lhe lançaram.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Não Deu na Coluna Social

Apertou os olhos, orientando com algum sucesso os dedos, “longos como os de uma pianista”, seu pai dizia, que seguravam agora o lápis delineador. Depois o rímel. Depois, ainda, o batom vermelho vivo, tão vivo que teimava em escapar além dos lábios finos. Penteou demoradamente os cabelos, que a tintura loura já falhava em dissimular o branco. Inclinando o frasco, arrancou um último spray do último Givenchy. Ajustou a echarpe cor de jade ao redor do pescoço longo e ainda elegante: Etevaldo a comprara e presenteara durante a última viagem que fizeram juntos, antes de ele decidir partir sozinho, tão antes dela. Uma pontada no abdome. O alfinete de fraldas, necessário para manter a calça ajustada à cintura mais esbelta do que já fora, teimava em abrir-se de vez em quando. Ficou ainda um momento diante da penteadeira, girando o rosto um pouco à esquerda, depois à direita, como fizera tantas vezes antes, desde que se mudaram, ela e Etevaldo Bittencourt, para aquele casarão na Gávea. Buzinaram. Olhou através das venezianas brancas descascadas: além da floreira cheia de mato viu o táxi que a aguardava. Pegou o casaco cor de creme e olhou-se uma vez mais no espelho. Elegante, e as manchas de gordura no casaco não se via daquela distância.

Do alto das escadarias que levavam ao hall de mármore branco e preto, fechou os olhos. Escutou o som das conversas, os risos discretos, o tilintar das taças, a emanação de perfumes, loções de barba e brilhantinas, o cintilar dos colares, das tiaras e dos solitários. Sentiu os olhares voltando-se para ela. Desceu devagar, menos pela artrose, mais para desfrutar ainda uma vez aquela sensação que tanto a agradava. Não via a sala vazia, nem os vazios nas paredes, onde antes havia alguns Volpi, uma Tarsila, um Portinari e até dois desenhos de Picasso, sacrificados na tentativa de equilibrar as finanças suas e dos filhos. Whisky, o velho cocker spaniel, estava deitado no sofá, imóvel, desde a véspera. Afagou uma vez mais a cabeça de seu último companheiro, meio branca, meio loura, como a sua. Dirigiu-se à grande porta, guarnecida de metais dourados, abriu-a e olhou para trás. Suspirou. Valera a pena cada festa, cada gota de champanhe, cada jantar, cada viagem. Saiu, deixando atrás de si a porta destrancada.

“Para o Copacabana Palace, por favor, via Delfim Moreira e Vieira Souto”. Pôs os óculos escuros e acompanhou a paisagem da Zona Sul, enquanto apertava o vidrinho que trazia no bolso, cheio de bolinhas cor de chumbo. Com sorte, cairia dentro da piscina.