Aqui compartilho contos, crônicas, poesia, fotos e artes em geral. Escrevo o que penso, e quero saber o que você pensa também. Comentários são benvindos! (comente como ANÔNIMO e assine no fim do comentário). No "follow by E mail" você pode se cadastrar para ser avisado sempre que pintar novidade no blog.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Felicidade, essa bandida


Poucas coisas podem ser tão perniciosas quanto a felicidade. Eu, que tenho vivido sempre a perseguir essa quimera, agora, às vésperas de fechar o balanço de mais um ano, constato aliviado que grande parte daqueles votos de felicidade proclamados com maior ou menor sinceridade falhou miseravelmente. Que alívio!

Imagine alguém que enriqueça, ou, já sendo rico, que alcance toda a riqueza que tenha sido capaz de imaginar. Que tenha o amor e o corpo da mulher mais maravilhosa que possa ter desejado. Que seu time tenha sido campeão estadual, nacional e continental. Que não tenha sofrido nenhuma decepção, nenhuma ofensa, nenhuma dor física ou moral. Que tenha concretizado todos os seus sonhos e fantasias. Fosse eu o infeliz objeto de tanta felicidade, por certo não veria o alvorecer de 2012, pois antes do foguetório e do champanhe meteria uma bala nos miolos.

Pois que felicidade demais amolece o corpo e o caráter, e a insatisfação é a mãe de todas as artes. Imagine amanhecer a cada dia completamente feliz, sem qualquer inquietação, nenhum incômodo no corpo ou na alma. Quem se disporia a sair da cama? Que louco iria pôr a vontade, o engenho e os músculos a funcionar para tentar melhorar o que já é ideal?

Graças ao bom Deus, a Felicidade não me atingiu. Pequenas felicidades sim, algumas se demorando um pouco, outras ariscas como passarinho da mata. Posso me aproximar do ano novo pleno de insatisfações comigo próprio e com o mundo. Então, vou pegar no armário aquelas esperanças amarrotadas, rotas e verdesbotadas, amarrá-las no pescoço e sair na primeira chuva do ano abraçando e beijando meus semelhantes insatisfeitos, desejando um feliz 2012. Mas, no fundo, torcendo que não sejam tão felizes assim, deixando espaço para um 2013 melhor.

E vamos que vamos!

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Absolutamente

Concessão inédita, publico no blog texto alheio. Vão entender o porquê: Marly Riva, quase oitenta, é talento sensível e arisco, alma de passarinho. Diz que não acredita na beleza de seus cantos. É minha colega nas tardes-noites da Oficina de Textos. Cantou este conto que estava escondido, mas que dou a público neste blog.


Absolutamente

Quando saímos, mãozinha gorducha apertada à mãozona confiável de papai, soprei um fio de voz: “E se eu tiver que deixar o colégio?”

Papai passou pro outro canto do beiço o cigarro que enrolara havia pouco, lacônico: “Absolutamente!”

Perdi-me, em meus nove anos, acostumada a tudo esperar da magnitude paterna. Insisti: “Ela vai brigar, reclamar ou ser boazinha?”

O pai: “É comigo.”

Que caminho longo, doído. Minha cabeça mexia aflita. Desconhecidas ruas, nem era longe, os outros me pareciam estranhos, todos alegres, sem medo do futuro.

Lembro esparsamente do diálogo entre meu pai e a dona do colégio. Ele curto, seco, quase superior: “Vou ficar atrasado com o pagamento, é a primeira vez, saldo quando puder. Problema?”

E ela: “Absolutamente!”

Saí confusa, mas confortada. “Pai, não terei que sair do colégio? Ela disse sim ou não?”

E ele: “Absolutamente!” E enrolou outro cigarro.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Aquarela


No início de 2011 comecei a freqüentar aulas de aquarela por sugestão de minha filha mais velha e, depois, meus dois outros filhos juntaram-se a nós. O professor é Renato Alarcão, ilustrador muito conhecido e respeitado entre seus pares e que mora aqui pertinho, em Niterói. Depois de anos sem tocar nos pincéis, era a oportunidade de tomar contato com a aquarela, um meio bem mais complicado que a pintura a óleo. Uma definição me escapou outro dia: pintura a óleo é como operar uma máquina, enquanto a aquarela é como conduzir um rebanho: os pigmentos diluídos em água têm vida e decisões próprias. O melhor que você pode fazer é conduzir a tinta e antecipar, com alguma expectativa de acerto, o que ela vai decidir fazer sobre o papel. E cada  pigmento tem seu próprio temperamento: transparência, permanência, capacidade de aglutinar ou fundir com o vizinho de outra cor e outras idiossincrasias.

Essa tem sido uma grande oportunidade de conhecer gente bacana e interessante, com cabeças e esforços voltados para os mais diferentes objetivos, como padronagens para tecidos, ilustração de livros infantis, vinhetas para vídeo e TV, história em quadrinhos e graphic novels. Conversar e conviver com pessoas de áreas tão diferentes é tão bom e interessante quanto aprender aquarela.

Cheguei pensando em fazer paisagens, mas não fiquei imune à convivência com os ilustradores. A gente como que se contagia. Decidi que já dá para mostrar alguma coisa. Então, dêem uma olhada aí embaixo.

Segue também o link do mestre e amigo Alarcão:
Kurazo e seu mascote

Dancing Queen

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Conjecturas a Partir do Occupy Wall Street


Interior da cabana onde viveu H. J. Thoreau. Não tinha HDTV.

(Eu realmente escrevi e enviei hoje a carta abaixo para um grande amigo real, que é economista. Queria compartilhar com ele, mas também com vocês, as minhas inquietações)

Meu querido amigo

Você é o meu único amigo economista. Você é um economista desvinculado de qualquer empresa, um economista acadêmico. Acima de tudo, você é uma das pessoas mais inteligentes e cultas que conheço. Então, você seria a pessoa que poderia dar opiniões relevantes e responder algumas perguntas que me parecem urgentes e me têm afligido muito ultimamente. Eu já fiz essas perguntas a você, mas não tive resposta. Talvez a culpa seja minha, por não colocar as questões de forma clara.

Meu amigo, estou aflito sobre algumas coisas que me parecem da ordem do dia, e queria muito saber sua opinião. Vou tentar fazer as perguntas de forma objetiva, e depois colocá-las no contexto:

Qual será a opção ao atual modelo capitalista de crescimento econômico ininterrupto? O atual modelo centrado nas empresas, no lucro para os acionistas, importação de lucros e benefícios e exportação de lixo, poluição, rejeitos tóxicos, abusos trabalhistas, etc, etc, etc. me parece esgotado. Bateu de frente numa coisa óbvia, que irresponsavelmente o atual sistema foi empurrando com a barriga enquanto pôde: os recursos do planeta não são ilimitados.

Avançaremos cegamente no atual modelo até que ele cause um colapso (que, me parece, já está ocorrendo), ou seremos inteligentes o bastante para mudarmos de rumo antes do desastre?

O que virá depois?

Quais serão os novos paradigmas possíveis?

Hoje, por acaso, me lembrei do famoso livro de Henry James Thoreau que eu li e é uma referência para mim e para muitos: "Walden - A Vida nos Bosques". Você leu? Se não leu, certamente ouviu falar. Thoreau era o filho culto de um proprietário de uma fábrica de lápis em Massachussets na primeira metade do século XIX. A própria visão da indústria florescente, da recém chegada estrada de ferro, da ostentação e desperdício dos mais abastados já presentes naquela época o levaram a tomar refúgio por um par de anos em uma pequena cabana às margens do então selvagem lago Walden. Não viveu à custa do papai. Por uma ninharia, comprou pregos, madeira e duas janelas de demolição, um suporte de ferro para a panela sobre a lareira, etc. Só o estritamente básico. Então, construiu ele mesmo uma cabana às margens do lago. Plantava para subsistência e vendia o excedente. Coletava nos bosques, caçava, estocava para o inverno, etc. Enfim, simplificou ao máximo e tinha muito do que hoje já se entende como sendo a maior riqueza de um homem: tempo livre para pensar, conviver e criar. Buscou a essência da vida, para segundo ele, não chegar ao fim da vida e descobrir que não havia vivido. Não era um eremita. Lia, escrevia, conversava, recebia e visitava pessoas para trocar idéias. Não tinha tranca na porta e muito pouco tinha que merecesse ser roubado. Seus tesouros eram alguns livros e seus escritos, além da paisagem e da natureza quase intacta que o cercava e interagia com ele.

Essa simplificação é uma meta para mim e vem sendo buscada novamente por diversas pessoas individualmente ou em comunidades pelo mundo inteiro. Talvez seja a segunda onda do Flower Power. Talvez menos ingênua dessa vez. Se cada vez mais pessoas voluntariamente caminhasse nessa direção, o consumo diminuiria muito. Consumiríamos menos energia, geraríamos menos lixo, consumiríamos menos bens materiais.

As duas primeiras coisas (menos lixo, menos consumo de energia), todo mundo quer, é unanimidade. A última das três, menor consumo de bens materiais, deixa o capitalismo e os capitalista muito assustados e nervosos.

Os governantes de todos os países alegram-se quando podem anunciar que o consumo de energia elétrica aumentou, o número de automóveis vendidos aumentou, o consumo das famílias aumentou, o comércio vendeu mais, etc., etc.,.etc. E franzem o cenho quando o contrário acontece. Tudo bem, em países onde muitos não alcançaram um padrão de vida decente, no geral dados que traduzam aumento de consumo podem ser uma boa notícia. Os ricos estão cada vez mais ricos, é verdade, mas alguns mais talvez estejam conseguindo superar a linha da pobreza. Mas a redução do consumo também preocupa países como Suécia, Dinamarca, Alemanha, Japão, por exemplo, onde a pobreza é residual.

Parece-me então que a lógica dos governos é míope e está atrelada à lógica das grandes corporações. Crescer, crescer, crescer, consumir mais, mais e mais. Trabalhar mais, mais e mais para alcançar essa meta de acumulação e consumo, que promete a felicidade. Consequentemente há cada vez menos tempo para pensar, meditar os rumos que cada um está dando à sua vida e se ela está sendo encaminhada na direção do que efetivamente pode trazer alegria que não seja apenas temporária, como é a alegria gerada pelo consumo.

Claro, não estou sugerindo que as pessoas passem todas a viver de agricultura de subsistência. Vamos continuar quase todos vivendo em grandes cidades, vivendo de nossos empregos, com família para sustentar. Mas será que precisamos trabalhar tanto, suar tanto para pagar tantas prestações de tantas coisas? Precisamos realmente de todas essas coisas? Precisamos de um carro tão caro e tão novo? Precisamos de dois ou três carros? Precisamos de tantos aparelhos de TV? Precisamos adquirir tantas novidades eletrônicas das quais não sentíamos a menor falta há tão pouco tempo atrás? Precisamos de um relógio tão caro, de mais de um relógio e de tantas roupas e sapatos que mal conseguimos usar, a entulhar nossos armários? Precisamos jogar fora tanta coisa que funciona bem apenas porque surgiu uma mais moderna e mais na moda? Precisamos nos endividar tanto para termos essas coisas, dar tanto  de nosso tempo e trabalho para enriquecer os bancos pagando juros de financiamento?

Vou perguntar de novo. O que ocorreria com a macroeconomia se a maioria das pessoas de países com bom IDH, ou a parcela com bom IDH dos países emergentes, saísse dessa roda viva (samsara para os budistas) de consumo progressivamente maior e priorizasse melhores relações com as pessoas, auto-conhecimento, cultura, lazer, tempo livre, etc.? A economia e a civilização entrariam em colapso, como querem nos fazer crer, ou muito pelo contrário?

Por que esses valores aparentemente intangíveis não são considerados como riquezas pelas nações e pelos seus governos? (o governo do Butão tem, pelo menos no discurso, uma visão diferente.)

O que ocorreria se a maioria das pessoas acordasse dessa hipnose infligida pelas corporações de que "a felicidade é um crediário nas Casas Bahia", como sabiamente sintetizaram os mestres Mamonas?

Será que nós mesmos estamos despertos e atentos em relação a essas questões?

Não penso que o atual sistema deva ser "derrubado" de cima para baixo, de fora para dentro. Não acredito em revoluções impostas e violentas. Acredito apenas em revoluções que aconteçam voluntariamente, de dentro para fora em cada pessoa individual.

Grande amigo: espero uma resposta sua ditada pelo melhor de sua mente e seu espírito, talvez independente das opiniões acadêmicas que você tão bem estuda e conhece. Em outras palavras, medite na sua resposta, pô!

Aguardo com ansiedade sua opinião.

Grande abraço.

Pra quem quiser saber mais sobre "Walden" e Thoreau:

Trechos selecionados em inglês: http://xroads.virginia.edu/~hyper/walden/toc.html

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Upa, nenê


Só me resta essa bateria, então vou resumir o que vi. Cacoete do repórter que fui. Não sei por quanto tempo vou continuar tendo sorte. Os cães estão cada vez mais ferozes e atrevidos. Culpa da fome, acredito. Agora, no inverno, ficam piores. Mas ainda tenho esses mapas do metrô, que me permitem me deslocar pela ilha, pelos túneis que não foram inundados.

Quando eles ocuparam a praça, ninguém deu muita importância. Desocupados, disseram. Bichos-grilo pacifistas, sem-tetos e incompetentes para arrumar trabalho. Pegaram empréstimos para comprar mansões e não puderam arcar com as hipotecas. Vão cansar quando chegar o inverno. Quando chegou o inverno, eles realmente cansaram. De esperar. Um barril de pólvora esperando um fósforo. Aí, aquele negro cego, Josiah Baker, apareceu morto com um tiro na praça. A polícia apresentou um certo Feliciano Martinez como culpado, mas antes que ele pudesse ser ouvido, foi morto por um tiro a queima roupa. Uma tal de Felicity McMurdo, a loura gorda. Garçonete desempregada. Pai dos filhos dela, nunca deu pensão, justificou-se. Era o fósforo. Felicity e Feliciano: os branquelos de um lado, os latinos do outro. Houve gritaria dos moderados, mas não queriam moderação. Só se deram conta do tamanho da coisa quando alguns financistas decapitados foram jogados da ponte do Brooklyn. As cabeças ficaram meses espetadas nas grades da Trinity Church. Depois, os cachorros roeram.

Ela ainda estava lá, na época, a ponte. Upa, nenê. Na primavera de 2031 a esquadra brasileira, ancorada ao largo da foz do Hudson, disparou uns mísseis que a puseram abaixo. Era bonita. Mas os brasileiros não conseguiram resgatar o imperador. Barack III desapareceu sem deixar vestígio. Dizem que existe uma seita no Hawaii que aguarda o seu retorno. Caralhoporra. Sei não.

A China protestou. Com a envergadura moral de serem a maior democracia do mundo, não gostaram do que viram. Boicotaram a gente. Economicamente, quero dizer. Foi pior. A Segunda Guerra de Secessão, ao contrário da primeira, foi vitoriosa, e quiseram restaurar a escravidão. O último presidente, Gonzáles Urrútia, fugiu ninguém sabe para onde, Cuba, talvez. Latinos, negros, chinas, go home, eles disseram. Mas o Nordeste já estava tão decadente que eles nem se deram o trabalho de manter a ocupação. Abriram as portas do Zôo e partiram. Quem acabou jantando os antílopes e as girafas foram os lulus abandonados pelas madames. Upa, caralho.

Acabamos divididos em quatro. A Federação do Sul, a Federação do Sol do Pacífico, do jogo e da maconha, Os Estados Unidos da Chuva e os Territórios Selvagens do Nordeste, que não têm governo central, apesar de dois séculos de brigas e escaramuças. Ninguém quer nem invadir essa merda. Upa, upa.

Os do Sul reativaram os mísseis nucleares. A questão Israel – Palestina foi resolvida. Lá só tem árabe e judeu, os do Sul se deram conta. Bastou um míssel. Hoje não existe nem Israel nem Palestina. Nem Santo Sepulcro. Mas já construíram outro em Orlando. Cem paus pra entrar, duzentos para beijar a cruz. Barato, eu acho. Agora os mísseis estão apontados para o Brasil, a China e a Índia.

Estou ouvindo uns latidos vindos da direção da estação Canal Street. Upa, nenê, caralhoporra, upa upa. Continuo depois.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Onde Está a Liberdade?


Um entendimento fundamental que o budismo abriu para mim foi a possibilidade de novas inteligências. Olhar aquilo que sempre olhamos e ver possibilidades diferentes em todos os aspectos da vida. Nas relações com as pessoas em geral, com a família, com os filhos, a esposa ou marido e colegas de trabalho. Olhar a arrumação que fizemos em nossa vida e enxergar que a arrumação poderia ser completamente diferente.

Algumas pessoas conseguem olhar para a sala de casa e imaginar como um sofá novo , uma cortina nova, poderiam dar um novo aspecto à velha sala. Umas poucas ainda fazem uma simples mas completa mudança na disposição dos móveis para fazer uma sala "nova" sem gastar nada, apenas com o que já têm, talvez se livrando de um móvel grande e trambolhudo que impede que o ambiente fique mais arejado. Um número ainda menor de pessoas consegue fazer isso em suas vidas.

Essa rearrumação às vezes pode começar com uma crise: a perda de renda, uma mudança de cidade forçada por circunstâncias, uma separação conjugal são todas ótimas circuntâncias, nem sempre aproveitadas, para arrumarmos a vida de uma forma mais leve, inteligente e funcional.

O que dificilmente se enxerga é que temos a liberdade de remexermos tudo em nossa vida sem a necessidade de que uma crise, com toda a angústia que as crises costumam trazer, seja necessária. Há uma liberdade enorme em cada dia que amanhece, mas as pessoas se sentem acorrentadas às circunstâncias e incapazes de mudar qualquer coisa em suas rotinas, muitas vezes insatisfatórias e sufocantes. Os conflitos são recorreentes, sempre nas mesmas circunstâncias, e parecem imutáveis. Por que?

A única coisa que impede a mudança é a nossa maneira de ver, ou melhor, de não ver. Nada muda porque não vemos as possibilidades, não vemos as opções, não vemos que a porta da gaiola esteve e está aberta todo o tempo.

Então, a mudança necessária e suficiente é a mudança em nossa maneira de ver, de sentir, de reagir às circunstâncias. Mas isso está longe de ser simples se estamos agarrados às nossas certezas, essas mesmas certezas que estão nos levando, como sempre levaram e continuarão levando, a situações de conflito e sofrimento. Esperamos que as coisas se adaptem às nossas certezas para que tudo passe, finalmente, a funcionar como desejamos. Que burrice, não? Isso não aconteceu até agora e não vai acontecer no futuro. Mais inteligente seria adaptarmos nossas certezas à realidade das coisas e iniciarmos um mundo de novas possibilidades, de sincronicidades, de sinergias que farão a vida, finalmente, sair da inércia.

Então, o campo ilimitado de mudança está do lado de dentro, na mente. Se não mudarmos aquilo que está atrás de nossos olhos, que impede nossos olhos de ver com liberdade, nossa visão continuará estreita e limitada. Aí entra a meditação.

A prática da meditação é o exercício da liberdade. É livrar a mente dos limites imaginados. Aos poucos, a percepção da vacuidade de tudo que parece sólido, da luminosidade inerente a tudo e a todos, da inseparabilidade de tudo que parece bom e tudo que parece ruim vão se tornando claros. A vacuidade de tudo aquilo que defendemos com unhas e dentes como sendo nosso - nossas posses, nossas crenças, nossa honra, a imagem de respeitabilidade que se cultiva diante dos outros, seja uma pessoa comum diante dos vizinhos e colegas de trabalho, seja um grande empresário ou senador da república diante de seus pares - começa a se manifestar. A clareza de visão não desfaz as grades e os muros, mas nos faz perceber que as grades e os muros só existiam atrás dos olhos que os viam como reais. Eles nunca estiveram lá.

Essa mudança tão simples é percebida como simples quando é atingida, em maior ou menor grau. É o que eu entendo como iluminação. Depois de se tomar a canoa e atravessar o rio de ignorância e cegueira, a custo de remadas diligentes e vigorosas para atingirmos a outa margem, percebe-se que não havia canoa, não havia margem, não havia rio, diz o sábio ensinamento.

Então, pratiquemos essa liberdade preciosa, essa jóia de valor inestimável que chutamos todos os dias em nosso próprio quintal.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Minha Buenos Aires Querida

Alguns registros selecionados que fizemos em Buenos Aires há uma semana. Ênfase maior no astral da capital portenha que nos marcos turísticos. Muy rica, muy hermosa, muy hermana.
Obelisco na Av. 9 de Julho: doze pistas indo e mais doze voltando. E os icônicos táxis "falsa loura": amarelos em cima e pretos embaixo.


Puerto Madero e a Ponte de la Mujer, do arquiteto espanhol Calatrava. Só dá para ver o casal dançando tango, que inspirou o arquiteto, depois da segunda garrafa de vinho.

Os cafés são onipresentes. Esses dois senhores são, para mim, os portenhos típicos: meia idade, elegantes e grandes fumantes.

Casas feitas de restos de containers no Boca. Arquitetura gótica latina: goteiras e paredes de lata.

Cemitério da Recoleta: clima de cemitério mesmo, mas imperdível..

Paseadores de perros. É a profissão da moda e estão em todos os parques. Dizem que faturam R$ 2.500,00 por mês.

Os ônibus comuns são lindamente bregas. Eles não deixam a gente esquecer que, apesar da atmosfera parisiense, estamos en Latino América

O Café Tortoni é ponto de encontro há 150 anos. Divida a mesa com os espíritos de Borges e Garcia Lorca.

Ótimos músicos dão canja nas tardes da Calle Florida.

E
Equipamento adequado para bem dançar o tango é essencial.

O fileteado é o estilo gráfico do tango, e o Abasto tem os melhores.

Ainda se encontra antigos Citroen 2CV. O pai da Mafalda tinha um.

Tango não tem idade.

Era aniversário de 41 anos da feira de Santelmo, e os expositores da Plaza Dorrego estavam fantasiados. Essa foi minha campeã. Topas uma corrida?

O tango está nas ruas. A vontade de aprender é irresistível!

E, por fim, o encontro com uma amiga querida.

Occupy Wall Sreet: um olhar crítico


A crise atual me parece vir na esteira de duas coisas pontuais e uma mais ampla. As pontuais são duas irresponsabilidades: a irresponsabilidade fiscal de vários dos países mais ricos e a liberalidade irresponsável dos órgãos oficiais de fiscalização financeira dessas mesmas principais economias. A primeira me parece conseqüência de interesses eleitoreiros de curto prazo, e a segunda de uma fé irreal nas virtudes do liberalismo econômico. Em ambos os aspectos, parece que hoje o Brasil, com sua lei de responsabilidade fiscal e seus órgãos oficiais de fiscalização dos mercados, quem diria, tem muito a ensinar a boa parte da Europa. A Alemanha permanece como sinônimo de país sério navegando numa nau de insensatos, a União Européia.

A coisa mais ampla é a superpopulação do planeta e a percepção tardia de que o número de seres humanos e o crescimento econômico (pelo menos no modelo atual) necessário para lhes dar sustento decente têm limites impostos pela capacidade deste planetinha azul. Bem, antes tarde do que nunca. Essa é uma outra conversa.

Também acho que se as economias das nações ricas estivessem bem, não haveria este movimento. Penso, no entanto, que será dessas mesmas nações capitalistas e democráticas que virão as melhores idéias para reverter a situação. Protestos como esse na China, na Síria ou Cuba seriam impossíveis. Vivas à liberdade de expressão e ao incentivo à iniciativa individual.

Penso ainda que se este movimento não oferecer alternativas mais objetivas, em vez de protestar contra "tudo isso que está aí", vai se extinguir sem provocar nenhuma mudança. Precisam ser mais específicos e sugerir alternativas claras. Tem gente séria, inteligente e com idéias ali no meio. Mas também parece que muitos estão lá apenas para dizer: “Quero meu emprego e aquele imóvel acima de minhas posses, que eu não pude pagar a hipoteca, de volta”.

domingo, 30 de outubro de 2011

Um Corpo no Escuro


Conhecemo-nos na faculdade de medicina. Mário era filho de um fazendeiro de café no interior de São Paulo e, a princípio, seu modo caipira de pronunciar os erres me divertia muito.  Lembro-me de termos sido colocados diante do mesmo defunto recendendo a formol em nossa primeira aula prática de anatomia. Os risos nervosos e as piadas mal colocadas tentando atenuar o incômodo causado por aquelas peças – era assim que nos referíamos aos defuntos ou partes deles: peças – escancaradas, com suas vísceras impudicamente espalhadas sobre a mesa de aço.

Depois de poucas semanas estávamos bem mais à vontade naquelas aulas, alguns chegando a trazer os últimos bocados do lanche ou os últimos goles de refrigerante para a sala de dissecção.  Havia muitos colegas vindos do interior do estado, outros da cidade do Rio de Janeiro e ainda do Estado de São Paulo, estes em sua maioria descendentes de italianos. A lista de chamada era recheada de Zanovellis, Scarantos, Materassis, Polletis e outros oriundi, e Mário era mais um deles. Camaradagens se estabeleceram durante o curso de seis anos e algumas preciosas amizades persistem até hoje. O Mário é uma delas.

O fim do primeiro ano de matérias básicas chegava ao fim. Mário, que diversas vezes havia dito que me levaria um dia para conhecer sua família na distante São José do Rio Preto sem que eu o levasse o assunto muito a sério, decidiu que o feriadão de Finados, que se estenderia de sábado a terça feira, seria a oportunidade ideal. Feito o convite, levantei o dinheiro da passagem e embarcamos num ônibus noturno para a capital paulista, onde pegamos um segundo ônibus rumo ao nosso destino final.

Lá, esperava-nos na rodoviária um dos irmãos de meu colega com uma picape. Sérgio era seu nome, se bem me lembro. Depois de passarmos rapidamente pelo centro da cidade e para que se comprasse alguns mantimentos, pegamos novamente a estrada, primeiro pelo asfalto, depois por terra batida, atravessando canaviais e cafezais a perder de vista. Adentramos uma alameda de mulungus vermelhos, que nos levou ao terreiro da fazenda. O casarão antigo e imponente se estendia em dois andares e muitas janelas à direita e à esquerda de uma escadaria de pedra ladeada por duas palmeiras centenárias.  Enquanto ajudava na retirada da bagagem e dos outros volumes da caçamba, uma mulher que adivinhei ser a mãe de Mário desceu as escadas quase aos saltos para abraçá-lo, três meses que não via o filho. Tinha a pele muito clara e os olhos verdes como os de meu amigo, e reparei que seus prováveis quarenta e tantos anos tinham lhe poupado a maior parte da sua beleza. Cumprimentou-me afetuosamente, aquele amigo de quem o filho tanto lhe falava, e me guiou pela escada acima para conhecer a sede. Quando ergui os olhos, tive uma visão que me encheu de esperanças de que aquele seria um feriado para não esquecer. Quatro garotas me olhavam com curiosidade. Fui apresentado a Liliane e Teresa, as duas irmãs de Mário, pouco mais velhas do que ele, e mais duas primas, Marcela e Mônica, que também tinham vindo para o feriado. Não consegui decidir qual a mais interessante: todas de pele bem clara e rostos delicados, os cabelos variando de louro escuro ao castanho quase preto.

Ofereceram-me o “quarto da caixa d’água”, um cômodo pequeno no extremo do corredor à esquerda. A mobília resumia-se a uma pequena cômoda bem antiga, uma cadeira simples e uma cama de viúvo, ladeada por uma mesinha com um lampião a gás. Acima da cabeceira, junto ao teto, uma pequena porta dava acesso ao forro da casa e à caixa d’água, que se anunciava por um gotejar monótono.

Acomodadas as bagagens, e enquanto não era servido o almoço, fui levado a conhecer os demais cômodos do casarão, cada qual com sua história e móveis que remetiam a antepassados da família. Um dos quartos, o único com as janelas fechadas, era o “quarto da santa”. Ali, uma serena imagem de Santa Terezinha apoiava-se sobre uma cômoda, ladeada por uma jarra de copos de leite e uma vela votiva acesa, a cena naturalmente despertando um sentimento de contrição e fazendo descer um ponto a altura de todas as vozes.

A chegada do velho Mário, o pai, foi a senha para que fosse servido o almoço: pernil e costelinhas suínas acompanhados de polenta e precedidos por uma prova da pinga destilada ali mesmo. Só então se juntou a nós Dona Célia, mãe de Marcela e Mônica. Muito parecida com a irmã, inclusive na beleza, trazia um quê de tristeza nos olhos, que mais tarde soube ser por conta de uma viuvez recente, um acidente de carro na estrada. Via-se que se esforçava sem muito sucesso em participar da conversa. Fomos perguntados sobre as aulas de medicina e sobre Niterói e suas praias, assunto que interessou as quatro moças do interior e serviu para quebrar o gelo com elas, que até então conversavam entre si aos cochichos entrecortados por risadinhas. “Quem sabe um dia o Mário não leva vocês lá e eu lhes apresento Itacoatiara, minha praia favorita?”, arrisquei enquanto piscava suplicante para meu amigo, que me sorriu cúmplice.

Terminado o almoço, serviu-se café na varanda dos fundos, o que nos fez suar naquele calor de quase verão.

“Diz o rádio que vem chuva hoje ainda”, declarou o velho Mário.

“Finados sempre chove”, disse a empregada recolhendo o bule e as xícaras.

Meu amigo decretou: “Vamos agora arrear os cavalos para irmos até o açude. Se amanhã chove, não poderemos mais ir.”

Fomos vestir calções e biquínis por baixo das calças compridas, eu antecipando a visão de porções mais generosas da anatomia das garotas, e depois descemos para as baias, onde minha ignorância naquela função me deixou apenas observando a lida. Fiquei admirando a intimidade de Mário e seus três irmãos com os arreios, freios, selas e mantas, as fivelas sendo apertadas e os nós sendo dados nas tiras de couro. Distribuídas as montarias, coube-me um pangaré atarracado de nome Sabiá, que teimava em acompanhar o galope dos outros animais com um trote duro que me trouxe vivas lembranças da refeição recente e me fez motivo de chacota das meninas e de meu amigo:

“Na volta nós, trocamos”, consolou-me ele.

Chegando ao açude, pude conferir com deleite tudo o que vinha antecipando, e não me decepcionei. Nadamos, brincamos, inventamos disputas e rimos bastante. Depois, uma das primas tirou um cigarro de maconha da mochila, que foi aceso e passado de boca em boca em meio a risadas a princípio, e depois em silêncio.

Naquela noite, depois de anunciar-se com ventania e trovoadas, uma forte chuva caiu sobre a fazenda e a energia elétrica acabou no meio do jantar. Jogamos buraco à luz de velas e, por volta da meia noite, fomos todos dormir. Acendi o lampião e tentei ler um pouco do livro que havia levado, mas logo desisti e apaguei o lampião. O breu era total, e eu via ocasionalmente apenas alguma luz dos raios já distantes através das frestas das pesadas janelas de madeira. Fiquei imaginando no escuro qual das quatro garotas era a mais bonita e se alguma delas me havia dado atenção especial até adormecer ouvindo o pinga-pinga da caixa d’água.

Não sei quanto tempo depois acordei com o coração disparado e o sangue gelando nas veias: tinha ouvido passos no quarto. Arregalei em vão os olhos e agucei os ouvidos. Parecia haver alguém aos pés da cama.

“Quem está aí?”, perguntei. Ninguém respondeu. Ouvia-se apenas o som baixo de uma respiração rápida, quase ofegante. “É você, Mário?” O som de passos aproximou-se pelo lado esquerdo da cama e senti que o colchão cedia ao peso de um corpo a sentar-se. Tremi quando uma mão pousou sobre minha perna e instintivamente segurei-a. Era uma mão pequena, que num leve frêmito segurou também a minha. Dedos suaves e tateantes deslizaram pelo meu rosto e enfiaram-se por meus cabelos, descendo pela nuca e puxando-me para um beijo. Outros beijos seguiram-se num crescente de entrega e sofreguidão, enquanto eu tateava aquele corpo desconhecido vestido com uma camisola fina, buscando em vão sua identidade. Ela enfiou-se por debaixo das cobertas e passou a direcionar com segurança minhas mãos e meus beijos desajeitados por seus vales e por suas curvas. Entreguei-me submisso a seus comandos. Minha única preocupação era o ranger ritmado da velha cama.

Estava só quando acordei com os primeiros raios de sol que se infiltravam pelas frestas da janela. Um sonho, pensei a princípio. Mas minhas roupas perdidas sob as cobertas atestavam que tudo havia realmente acontecido. Instintivamente vesti apressado o pijama, como um criminoso que limpa o local de um crime. Depois, recuperando aos poucos a calma, fiquei mirando o teto, buscando em cada pedaço de meu corpo sentir de novo o contato daquele outro corpo desconhecido.

Quem seria? Não tinha a menor idéia. Sabia apenas tratar-se de alguém bem mais à vontade e experiente nas artes do amor do que eu. Fiquei tentando imaginar que, fosse quem fosse, se deixaria desmascarar quando cruzasse o olhar com o meu, encarando-me por um momento mais demorado ou desviando os olhos para não se deixar trair. Mas o café da manhã e o resto do dia transcorreram sem que qualquer das quatro moças transparecesse qualquer embaraço ou interesse especial quando se dirigiam a mim. Não podia tampouco contar o acontecido a meu amigo sem abrir-lhe a possibilidade de que tivesse sido uma de suas irmãs. Na véspera de voltarmos a Niterói, troquei alguns beijos furtivos com Marcela, a prima mais nova, que me deram a certeza de que não fora ela.

Até hoje repasso as lembranças daquela noite sem saber de quem era aquele corpo. Gostaria que aquelas lembranças tivessem um rosto, um nome. Mas, apesar de ainda intensas e vívidas, elas são apenas isso: um corpo de mulher, um corpo que se tem feito presente no corpo de todas as mulheres que amei desde então. Nunca contei essa história a ninguém. Pareceria a quem me ouvisse uma fantasia de um quase adolescente querendo contar vantagem. Faço-o agora, caro leitor, na confiança de que meus cabelos hoje grisalhos confiram-me alguma credibilidade. Talvez você tenha um palpite.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Até aqui penso assim


Dizem os cientistas que o afeto explica o porquê de lembrarmos de certas cenas em detalhes pelo resto de nossas vidas, enquanto nos esquecermos em pouco tempo de quase tudo que se passa conosco. Cenas carregadas de emoção e significado ficam tatuadas em nossa lembrança e acabam por moldar o rumo que damos a nossas vidas. Algumas passagens me vieram à mente hoje, como que encadeadas.

Eu devia ter uns quatorze ou quinze anos. Cresci em uma família sem nenhum engajamento religioso, mas numa noite, sozinho em meu quarto, me veio um questionamento, ou melhor, uma quase certeza: a de que amar o próximo como a mim mesmo seria uma noção fundamental. Pode parecer uma coisa banal para quem nasceu e cresceu em uma família religiosa, mas não era o meu caso. Aquilo me pareceu uma revelação. Eu, que tenho um pai que acredita até hoje que diferenças devem ser resolvidas através de confrontação, bravatas e  ameaças, vi naquela afirmação uma alternativa que poderia se encaixar melhor com meu temperamento pacífico e naturalmente conciliador. Talvez naquele momento fosse apenas isso, uma alternativa menos penosa. Pelo menos a princípio.

Por volta dos dezoito anos, iniciei uma grande amizade, que perdura até hoje, com alguém de uma família batista. Como é costume entre eles, o batismo se dá quando do ingresso na vida adulta, e esse meu amigo foi batizado um pouco depois de travarmos amizade. Nessa época, meus pais estavam atravessando o penoso processo de separação, e aquela família bem estruturada de meu amigo me recebeu de forma calorosa, compensando um pouco o vácuo criado pela desagregação da minha própria. O sentido religioso e a ética passaram a ser assunto freqüente nas conversas entre eu e este meu amigo, e a visão ética e cristã do mundo começou a orientar minhas tentativas de entender o que se passava à minha volta, uma tentativa de acender alguma luz que diminuísse minha perplexidade em relação ao que eu via ocorrer à minha volta. Meu amigo e sua família mudaram-se para Brasília, e eu acabei por me integrar a um grupo de jovens na igreja católica. Ali, onde fiz grandes amigos, continuei fazendo perguntas. Com o tempo percebi que nem todas as respostas me eram satisfatórias. Embora tivesse avaliado as respostas católicas com o coração aberto, nunca consegui concordar que um filho de Deus pudesse dizer que uma determinada religião, fosse ela qual fosse, tivesse o monopólio da verdade e a única chave da porta da salvação. Se é que foi realmente Jesus quem disse isso. Tenho minhas dúvidas.

Aos trinta e poucos, trazendo ainda muitos assombros e incertezas, buscava maneiras de lidar melhor com minhas emoções através da psicoterapia. Lembro-me bem de duas sessões em que consegui sintetizar quais eram minhas expectativas. Primeiro, que via todos no mundo, eu inclusive, como que em meio a um turbilhão, como se a vida fosse uma ressaca nos dando seguidas socas, sem que pudéssemos distinguir em que direção está a praia e se o céu está acima ou abaixo de nossas cabeças, todos se debatendo em total desorientação. “Quero por a cabeça acima das ondas e parar de me debater”, eu disse, “quero saber em que direção nadar.” Talvez pudesse ter dito: “Quero surfar essas ondas, e não morrer afogado me debatendo.” Num segundo momento, já bem mais tarde, disse que meu desejo maior era estar sinceramente aberto e sem reservas para as outras pessoas, superando minhas próprias defesas e desconfianças.

Hoje abandonei qualquer pretensão de vir a saber a razão de ser da vida. Só sei que ela é curta e preciosa. E vivo sem nenhuma expectativa de que ela venha a se estender depois de minha morte, pelo menos não como esta minha identidade individual. Recebi diversas coisas boas, outras nem tanto. Quero deixar para os que me sucederem mais coisas boas e menos coisas ruins, e nisso, apenas nisso, consistirá minha imortalidade.

Algumas coisas úteis eu aprendi. Se as coisas não vão bem, devo tentar fazer diferente. Se não deram certo até aqui agindo de uma determinada forma, elas vão continuar não dando certo se eu continuar agindo dessa mesma forma. Tenho sempre a liberdade de me reinventar nos aspectos que não estão funcionando. Afinal, não posso mudar os outros, só a mim mesmo. Aprendi e sei que eu e todos temos uma liberdade enorme e insuspeita de recriarmos nossa realidade. Tenho a liberdade de não me aborrecer cada vez que minhas expectativas são frustradas pelos outros ou pelas circunstâncias. Tenho a liberdade de tentar continuar em frente, mas também de mudar radicalmente de direção a qualquer momento. Tenho a liberdade de parar de arrastar noções inúteis como vitória, honra e prestígio e de tentar dominar minhas relações com os outros. Em vez de lutar, posso optar por entregar a vitória a quem hoje identifico como adversário, se passar a vê-lo de outra forma. Tenho a liberdade de abandonar aquilo que me acostumei ver como sendo minha identidade até aqui. A fé nessa liberdade tem me permitido ousar mudanças de rumo algumas vezes ao longo da vida. Arrasto ainda muitos pesos, mas tenho procurado aliviar a carga pelo caminho. Assim, mais leve, posso dançar mais e melhor enquanto me for permitido participar da festa.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Bianca e Sultão


Fabinho rompeu o noivado com Eveline quando ela tinha 28 anos e, desde então, ela nunca mais engrenou um relacionamento sério. Amigas a alertavam que a ânsia do matrimônio a lhe transbordar dos olhos e porejar da pele afugentava os namorados já nos primeiros encontros. Não conseguia deixar de imaginar como ficaria o rapaz de fraque lhe aguardando no primeiro degrau do altar. A custo admitiu para si mesma que a perspectiva da solidão e a condição de titia lhe assombravam os dias e as noites.

Aos poucos, o medo foi cedendo lugar à desesperança e à conformidade e, sem se dar conta, abdicou da vaidade. Os quilos se acumulavam, aos poucos deformando sua outrora sedutora silhueta, e os primeiros cabelos brancos chegavam sem merecer a vigilância de uma tintura. De mais a mais, seus cabelos passavam agora a maior parte do tempo presos por um descuidado elástico. Suas roupas, antes escolhidas com capricho, e os decotes que sempre eram assinalados por um pingente bem calculado foram aos poucos perdendo lugar para o que ela chamava de conforto, essa prioridade das mulheres que abdicam da própria graça. Tornou-se por fim uma cínica, passando a integrar o triste contingente das que repetem o mantra de que “homem é tudo igual”.

Numa das muitas noites insones em que ficava diante da tela do computador tendo por companhia apenas a caixa de bombons ou o pacote de biscoitos, foi arrastada pela curiosidade e entrou num site de encontros. Aos quarenta e poucos, já tinha perdido as esperanças de virar o jogo da solidão, mas tinha desenvolvido o prazer amargo de observar outras mulheres a se enredarem em relacionamentos que na sua maioria, segundo ela, terminariam em desgosto. Depois de duas semanas, decidiu incorporar uma heroína vingativa. Com o nick de Bianca Bandida, passou a lançar iscas virtuais que eram avidamente abocanhadas por diversos homens. Com a boca cheia de chocolate, comprazia-se em vê-los implorarem por um encontro, que ela adiava indefinidamente. A sensação de poder e o sabor agridoce da vingança lhe traziam, acreditava, consolo pelas desventuras passadas. Até que um dia calhou de teclar com um certo Sultão Carioca.

O Sultão, ao contrário dos demais, não parecia ter pressa em conhecê-la pessoalmente. Escrevia sem erros ortográficos, com elegância e graça. Em vez de alardear suas qualidades ou insistir em descrições físicas, parecia interessado em conhecer seus gostos e suas emoções. Era engraçado sem ser grosseiro. E aos poucos, Bianca, ou melhor, Eveline se viu ansiando por teclar com o Sultão a cada noite. Quando se deu conta, percebeu em si inequívocos sintomas da mais vulgar paixão. Lutou em vão contra esse sentimento que julgava ter sepultado em definitivo. E, como já temia e previa, o Sultão acabou por manifestar o desejo de conhecerem-se pessoalmente. Com o pânico e o desejo se digladiando em seu íntimo, fez-se de difícil sem, contudo, fechar questão para seu Sultão. Decidiu enfim que queria encontrá-lo, mas as providências teriam que ser tantas... Corte e tintura nos cabelos, compra de novas roupas, sapatos e depilação não constituíam maiores problemas. O peso sim, requeria tempo e esforço. Com a urgência dos apaixonados, procurou nutricionista e endocrinologista, matriculou-se em academia e divorciou-se de seus companheiros bombom e biscoito. Tentava equilibrar o tempo que a balança exigia com a impaciência do Sultão.

Três meses mais tarde e quinze quilos a menos, decidiu que era chegada a hora. Revelou-se Eveline para o Sultão Carioca que, na verdade, era o Wellington de Niterói. Combinaram de encontrarem-se num quiosque da Lagoa.

No dia e hora marcados, tremendo nas sandálias de saltos altos, ficou de longe observando. Viu a chegada de um homem vestido conforme a descrição combinada. Aparentando estar na casa dos quarenta, pareceu-lhe bem apessoado e interessante. Respirou fundo e caminhou em direção a ele: “Wellington?”

Conversaram por algumas horas e confirmaram as afinidades das conversas on line. Trocaram beijos, afinal, e despediram-se com promessas de novo encontro em alguns dias. Encontro esse ao qual ela nunca compareceu, alertada por uma mal disfarçada marca de sol no dedo anelar esquerdo de Wellington. Sofreu bastante, mas estava decidida a não ser a outra. Eveline, porém, já era outra. E um amor exclusivo e duradouro não tardou a lhe sorrir.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Fidelidades

Flávia só entrega o corpo a seu marido. Mas atormenta-se por sonhar luxúrias inconfessáveis com seu colega de trabalho. 


Alice aluga seu corpo de terça a domingo. Na segunda, oferece-se gratuita e apaixonada a seu amante, que já foi cliente. Depois, dorme serena.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Intenções


Ofegante e excitada, subiu nos saltos agulha e conferiu-se no espelho. A saia inédita e a blusa decotada que se combinavam pela primeira vez. O tom perfeitamente moreno do colo e das coxas, que se exibiam torneadas a custo muito legpress e spinning, harmonizava com o dos cabelos compridos e lisos que, de manhã, haviam recebido investimento de algumas horas de salão e quatrocentos dinheiros. Aspirando o doce exótico do perfume que emanava do pescoço e dos seios, suspirou satisfeita. Naquela noite não correria nenhum risco de afeto. Só cobiça.

domingo, 11 de setembro de 2011

Fabulinhas Fabulosas: O Filósofo

Filosofia com humor (L. F. Veríssimo)

Havia, há não muito tempo atrás em um reino pouco, pouco distante, um filósofo. O dito filósofo, professor universitário, gozava de grande conceito entre seus pares e muito prestígio nas esferas mais intelectualizadas do reino. A tônica de seu discurso, ou leitmotif, como ele fazia questão de dizer, era a perplexidade do ser humano diante da existência, a sensação de desamparo diante da perspectiva da morte e de esmagamento frente à imensidão do universo, a falta de sentido da existência, a inutilidade do sofrimento, enfim, essas coisinhas que dão camisa e pagam o leitinho das crianças dos psiquiatras e psicoterapeutas e fazem a alegria dos acionistas da indústria farmacêutica. Dava palestras freqüentes e muito concorridas, de onde era impossível o cidadão não sair macambúzio e deprimido, mas aplaudindo a lucidez extraordinária do filósofo. Já dera entrevista para o “Prosa e Verso” e um de seus livros, um romance que se tornara um cult instantâneo, estava em negociação para virar roteiro de filme do González-Iñárritu. Enfim, seu papo deprê dava o maior ibope.

O filósofo não era um homem bonito: magro e pálido, usava os cabelos compridos presos em um rabo de cavalo desajeitado. Fumava muito e bebia pacas: apenas destiladas, nutrindo um gosto especial pelo absinto. Apesar da aparência, tinha um séqüito de mulheres, algumas bem jeitosinhas e diversas exibindo com certo orgulho cicatrizes nos pulsos. Mas, claro, não se fixava em nenhuma. Tinha um rosário de casos curtos com mulheres tidas como as mais inteligentes do pedaço, inclusive uma famosa atriz da novela das nove.

Um dia, desmaiou em meio a uma palestra e foi levado às pressas a um hospital. Foi internado para esclarecimento diagnóstico, e o médico que o atendeu, profissional muito dedicado e da maior competência, virou-o do avesso. Além de gastrite moderada, anemia leve e um início de enfisema, descobriu-se que sofria de hemorróidas e amebíase. Tratada a amebíase e operadas as hemorróidas, teve alta com orientação de dieta, que se abstivesse por um tempo do álcool e parasse de fumar. O médico assistente prescreveu-lhe também um antidepressivo desses moderninhos, que não dão efeitos colaterais.

Contra todas as expectativas, o filósofo seguiu as instruções do doutor. Não sabendo bem se por fim do desconforto orificial, digamos assim, ou por efeito do antidepressivo, sentiu-se bem pela primeira vez na vida. Passou a se alimentar decentemente e não voltou a fumar. Tornou a beber, mas com moderação. Engordou um pouco e passou a exibir uma cor menos pálida, beirando o rosado. Viu-se, para a própria surpresa, rindo de bobagens. Um dia deu uma gargalhada e quase deslocou a mandíbula. Mas passou a ser olhado atravessado pelos antigos colegas de desespero. “Desertor!”, falaram dele pelas costas com desprezo. Nos meios intelectuais disseram que ele se havia vendido ao sistema e abandonado a luta sem causa. O tom de suas palestras ficou um pouco menos pesado, sendo inclusive, vejam só, acusado pelos antigos fãs de deixar entrever alguma esperança para o dilema da vida humana. Aos poucos as platéias passaram a ficar mais ralas e os convites escassearam.

Dizem as más línguas que ele se casou e tem dois filhos. Continua dando aulas na universidade, mas nunca mais escreveu nenhum livro. Foi visto domingo passado dando uma corridinha com a esposa no calçadão da praia. Ele ainda se aborrece um pouco com as vaias ocasionais que recebe, por isso tem evitado aparecer nos bares que costumava freqüentar. Parece que agora está planejando voltar a escrever. Está com idéias para um roteiro de teatro: uma comédia.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Gatão de Meia Idade - Parte 2


Pois bem: Rogério, nosso gatão sem ritmo de jogo, atende o convite da Lidinha para aquele “jantarzinho lá em casa na sexta”. Depois de dar uma conferida nos cabelos no espelho do elevador e desabotoar um botão na camisa, ele chega ao décimo andar. Suspiro, blim-blom. Tudo é expectativa. Então, meu querido leitor, hipoteticamente falando, imagine-se no lugar do Rogério:

1 - “Oííííííííí! Tudo boooooooooom?” Lídinha está de saia rosa, blusa rosa, sandália rosa e tasca duas bitocas em suas bochechas. Ou melhor: três, que ela é de São Paulo. No aparelho de som, Luan Santana ataca com “Meteoro da Paixão”. O Luan está também em um pôster autografado na parede, escoltado por Junior sem Sandy e Daniel. Na estante da sala tem a coleção completa do Paulo Coelho e, no sofá, alguns bichinhos de pelúcia te encaram de uma forma sinistra. Você:

(      ) Pensa que devia ter trazido um bichinho de pelúcia em vez de vinho;
(   ) Se prepara para dançar “Ilarilarilariê ôôô”, beber batida de morango com leite condensado e encara;
(     ) Sai correndo com medo do Conselho Tutelar.

2 – Lídia abre a porta toda vestida de couro preto, com uma corrente no pescoço e sorrindo só com um dos lados da boca. O heavy metal soa vários decibéis acima do tolerável. Você pensa no porquê de nunca ter reparado na enorme tatuagem de caveira que ela tem nas costas. Nem nas olheiras. Deve ser efeito da luz roxa, pensa. Você:

(    ) Se prepara para comer morcego à passarinho, despenteia o cabelo, pede desculpas por não ter trazido pó em vez de  vinho e encara;
(    ) Se pergunta se não vai ser você o jantar em um ritual satânico;
(    ) Na dúvida, sai correndo antes de descobrir.

3 – Lidinha abre a porta e um forte cheiro de incenso invade o corredor do prédio. Ela está descalça, veste uma saia indiana e uma bata colorida, sem sutiã. Fica na ponta dos pés, te dá um beijo na testa e te oferece um chá verde. Pede para você tirar os sapatos e aguardar um pouquinho enquanto ela põe a lasanha vegetariana no forno e traz uns biscoitinhos de soja com gergelim. Junto da janela tem um altar com a imagem de um sujeito com cabeça de elefante e várias fotos de outros caras de cabeça raspada e roupa laranja e vermelha. No outro canto, uma fonte, daquelas com bombinha de aquário, faz barulhinho de água. Você pensa ter visto um duende passar correndo no limite de seu campo visual. Por via das dúvidas, despeja o chá no vaso de planta. Você:

(     ) Fica em posição de lótus, começa a entoar ooooohhhhmmmm, e encara;
(    ) Procura na estante se tem livro de sexo tântrico ou Kama Sutra, para decidir se encara ou não;
(     ) Diz que sua igreja não permite esse tipo de coisa, pede desculpas e sai correndo.

4 – Lidinha abre a porta, te dá um longo beijo na boca. Depois te lança um olhar maroto e diz que tem uma amiga que adora o seu blog e está doidinha para te conhecer. “Você se importa se ela jantar com a gente?” Você gagueja qualquer coisa enquanto ela te puxa para a sala. “Luana, esse é o Rogério, Rogério, essa é a Luana Piovani.” Você:

(    ) Se ajoelha e agradece a Deus;
(    ) Faz cara feia para a Lidinha e diz que, “Puxa vida, pensei que ficaríamos só nós dois”;
(    ) Infarta;
(    ) Fica intimidado e sai correndo.

5 – Lidinha abre a porta, te dá um beijo e diz “Saudações tricolores!” Está vestida de shortinho branco e camiseta baby-look autografada pelo time inteiro do Fluminense. Tem um retrato autografado do Conca na estante e um pôster do campeão brasileiro de 2010 na parede. Pergunta se você não quer assistir o “Arena SporTV” enquanto a pizza Marguerita (tricolor) não fica pronta. Você:

(     ) Grita “Neeeeenseeeee!” e encara;
(     ) Sai correndo, que você não é tricolor;
(    ) Pensa em casamento e a convida para assistir Fluminense e Ceará no Engenhão no próximo sábado à noite.

6 – Lidinha abre a porta sorrindo e te dá um beijinho. Ela está com os cabelos soltos, levemente cacheados, emanando um cheirinho bom de xampu. O perfume é suave. O vestido estampado é leve e rodado, e ela calça sandálias de salto não muito alto. Do aparelho de som vem a voz do Djavan cantando “Flor de Liz”. Na estante, muitos livros, mas nenhum do Paulo Coelho. Tem também vários CDs de jazz, rock e MPB, e várias fotos de viagem com amigas, algumas na Europa. Ela é uma graça, você pensa. A conversa flui fácil, vocês riem muito e descobrem muitas afinidades. Aí, você:

(    ) Sai correndo, porque a mulherada está toda dando sopa e você não quer correr o risco de se amarrar assim, logo na primeira;
(     ) Suspira, lamenta pela mulherada, que vai ter que se virar sem você, e encara.