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sábado, 16 de julho de 2011

A Roda

“Prezado Sr.

Gostaria de relatar-vos recentes ocorrências observadas ao fim da análise dos registros dos sensores de pensamentos do Setor W 37. No exercício de minha função de Supervisor, percebi algumas leves variações de freqüências mentais que, ocasionalmente, fugiam da freqüência padrão, que é sempre caótica. Com efeito, nos últimos ciclos de tempo, observei diversos, embora breves, períodos harmônicos no sub-setor W 37-D. Levei em conta a possibilidade de tratar-se de um artefato no registro dos sensores e então repassei diversas vezes os dados. Pude constatar de forma inequívoca que essas harmonizações obedecem a um padrão que, uma vez compreendido, permitiu-me antecipar com surpreendente confiabilidade novas ocorrências.

Essa observação me causou alarme. Muito embora, como oficial de média patente, meu conhecimento sobre a totalidade do Sistema seja bastante restrita, tenho a nítida compreensão de que uma possível disseminação da harmonização das ondas mentais entre os seres humanos teria conseqüências nefastas para a segurança do mesmo.

Parece-me que a ameaça é ainda mais grave, lamento dizer. Após essas constatações no setor W37, procedi a uma revisão sistemática dos registros de freqüência de todos os demais setores sob minha responsabilidade. Detectei padrões semelhantes, embora ainda bastante sutis, nos Setor W 35, contíguo ao W 37, mas também no W 83 que, como o senhor bem sabe, não guarda nenhuma relação de contigüidade geográfica com os outros dois. Temo que a coisa toda possa vir a fugir do controle.

Em face da inequívoca gravidade dos fatos que ora relato, informo que não dei ciência dos mesmos a nenhum de meus colegas supervisores. Encaminho cópia dos dados compilados para que se proceda a uma reanálise que, certamente, se fará necessária. Entendo que o Controle de Segurança deva dar máxima prioridade à avaliação dessa questão e que providências cabíveis sejam tomadas com a necessária urgência.

Aguardando instruções,

Assinado: Capitão Bzourg
Supervisor dos Setores W, Ala impar.”

O Coronel Panthiakos terminou a exposição em voz alta do relatório, baixando-o em seguida sobre a mesa do General. Retirou lentamente os óculos de leitura da ponta do nariz e dobrou-os, guardando-os em seguida no bolso interno do paletó do uniforme. Tentou adivinhar a impressão que aquelas informações causariam por detrás da face pétrea de seu superior.

O General Paguris lentamente inclinou-se para trás, juntando a ponta dos dedos de ambas as mãos sobre seus lábios finos, os cotovelos apoiados nos braços da poltrona e os olhos estreitos e azuis cravados em algum ponto da parede às costas do Coronel. Após alguns longos segundos de silêncio, piscou duas vezes e ergueu o olhar para seu interlocutor:

“Coronel”, disse em voz grave e pausada, “como Supervisor Geral, o Sr. talvez possa vagamente alcançar o risco que esta merda, que teima em acontecer de tempos em tempos, pode causar ao Sistema como um todo. Na verdade, já estávamos cientes dessas ocorrências no Setor W. Já tivemos ocorrências semelhantes em épocas passadas nas Zonas 17, 41 e 79, mais conhecidas na Terra como Índia, Israel e Tibet. Desde então, aprendemos a valorizar os mais leves indícios de fatos que possam vir a pôr A Roda em perigo. Naqueles episódios, nossa reação foi tardia e levamos séculos terrestres para restabelecer o ciclo ideal d'A Roda, que correu considerável risco de parar de girar permanentemente. Aqueles lamentáveis episódios nos ensinaram a valorizar os menores indícios de oscilação, procedentes ou não, pois sabemos que um em cada quatrocentos episódios pode ser efetivamente perigoso para A Roda. Ao longo do tempo, no entanto, desenvolvemos estratégias que têm se mostrado eficazes em neutralizar essas oscilações. Essas ocorrências mais recentes atingiram nível 2B de alarme. Devemos, pois, aplicar o Protocolo Laranja, aprovado recentemente pelo Conselho.”

O Coronel Panthiakos ouvia e mal disfarçava a excitação e o prazer, antecipando alguma ação, afinal. Depois de tantos anos de treinamento para uma emergência, ele receava que uma situação assim nunca viesse a ocorrer antes que fosse deslocado para a Reserva. Sentiu o coração acelerar-se e o sangue correr mais rápido em suas veias e artérias com a perspectiva.

“Vejamos, Coronel” continuou o General, “quais são nossas metas, estratégias e providências:

Primeiro, devemos oferecer mais recompensas de curtíssimo prazo para aqueles que mais se empenharem nos Ciclotrons. Sabemos que, assim, quase todos os humanos abrem mão de praticar a geração de freqüências harmônicas, pois estarão sempre cansados demais ao fim de cada turno, embora ávidos para voltarem aos Ciclotrons no turno seguinte, e no outro, e no outro, até o fim de suas vidinhas miseráveis, só para conseguirem acumular mais quinquilharias inúteis.

Devemos restringir os contatos interpessoais profundos, oferecendo cada vez mais facilidades para a multiplicação de contatos superficiais e despersonalizados. Estes, sendo assépticos e menos emocionais, são facilmente controláveis via rede Ilusionik. Sabemos dos riscos que a multiplicação de contatos dérmicos e emocionais pode trazer à estabilidade do Sistema. Redobraremos ainda a vigilância para que não venham a ocorrer ajuntamentos de humanos em ambiente de silêncio. Reuniões de multidões, como o Sr. certamente deve ter aprendido na Escola de Oficiais Superiores, não trazem em si nenhum problema intrínseco e podem até ser muito úteis aos nossos objetivos, desde que haja níveis elevados de som e ruídos escolhidos por nós, que provoquem sempre a geração de ondas mentais de padrão desarmônico ou caótico. Assim procedendo, aliviamos as eventuais tensões inquisitivas. O questionamento daquela realidade que criamos para eles é o perigo maior. Poderiam vir a descobrir que não estão em estado parasitário com seus Ciclotrons e que nada os impede, na realidade, de levantarem-se e saírem andando por suas próprias pernas que, embora atrofiadas pelo desuso, poderiam levá-los aonde quisessem. Isso caso seus cérebros subjugados pudessem redescobrir a capacidade de observar seus próprios pensamentos cativos e então decidir pela liberdade de escolher o que pensar. Sabemos o caos que uma situação assim, de pensamentos expontâneos e não previsíveis, fora do padrão circular, poderia trazer. Haveria sérios riscos para a continuidade da geração da energia tão fundamental para a sobrevivência de nossa civilização superior.

O Ministério da Propaganda vem, como sempre, trabalhando duro na manutenção de nossa linha de convencimento sutil e é assim que desejamos resolver o problema. Em último caso, temos os focos harmônicos bem identificados e não teríamos maiores dificuldades em esmagá-los, se necessário. Essa, porém, seria uma estratégia de exceção. Devemos, porém, estar atentos a um perigo potencial: a última coisa de que precisamos são mártires. No passado uma estratégia desastrada aplicada em Jerusalém nos trouxe problemas graves, que levaram milênios para serem neutralizados, como o Sr. bem sabe.”

2 comentários:

  1. Minha homenagem a George Orwell
    Ralph

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  2. Interessante mistura de referenciais variados, Ralph! Gostei mto!

    Este General é bastante astuto ao utilizar a rede Ilusionik para o controle dos contatos interpessoais. Mas, pelo menos a mim, não atinge! Continuarei lutando bravamente contra o avanço das relações assépticas e menos emocionais!!!

    Quem sabe este não será o mote da próxima passeata a que você e sua esposa serão convidados? Vou ligar pra Torloni! Hahahaha...

    Parabéns! ;-)

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