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domingo, 29 de maio de 2011

A Cigarra, a Formiga e o Fim do Mundo

“O que você faria se soubesse que o mundo vai acabar amanhã?” A pergunta é recorrente na música, na literatura e no imaginário de todos nós. O apocalipse é o capítulo derradeiro da Bíblia (claro, não é o primeiro nem o segundo). A noção da própria finitude nos caracteriza como humanos, e o fim da civilização como a conhecemos, o fim da espécie ou o fim do planeta são formas de pensarmos na finitude humana em termos coletivos. Uma angústia universal.

Viver cada dia como se fosse o último é um chavão idiota que se repete de forma leviana. Precisamos planejar o futuro individual e da sociedade com responsabilidade. Mas também precisamos levar em conta que não teremos saúde ou juventude indefinidamente e um dia desses, que tanto pode ser hoje como daqui a algumas décadas, vamos nos confrontar com a nossa impermanência individual. O quando é que é o problema. Ou a bênção. No entanto, se tivéssemos a data certa em nossa agenda, talvez mudássemos nosso planejamento de curto, médio e longo prazo. Talvez só o de curto prazo fosse suficiente.

Não por acaso, a fábula da cigarra e da formiga é das mais populares. Existem três finais diferentes em circulação. Tem o final piegas e inverossímil em que, depois de ralar o verão inteiro, a formiguinha, generosa, dá abrigo à tiritante vagabunda. E ainda por cima, alma santa, agradece à cigarra pela música que alegrava seus dias de verão, enquanto todas no formigueiro ralavam e suavam se preparando para o inverno. Acredite se quiser, ingênuo leitor. Num segundo final fajuto, que deve ter sido criado por um cunhado invejoso depois de assistir um filme no novo home theater na casa da irmã, a cigarra se torna uma artista famosa, vai para Hollywood e vira celebridade milionária.

No terceiro, que é o original e reflete bem a natureza humana, uma formiga bem nutrida e aquecida em pijamas de flanela, com uma taça de vinho na mão e muito irritada por ter sido interrompida enquanto jantava com a família, manda a cigarra dançar para se aquecer e bate a porta na cara da pobre imprevidente (com inveja e sabor de vingança a lhe escorrer pelo canto das mandíbulas). 

Dependendo das características de sua personalidade, imagino que você, muito antes de cogitar o porquê, tenha se identificado com uma das duas personagens, ao mesmo tempo em que ficou com a incômoda desconfiança de que a outra é que estava certa, afinal. Eu confesso que, quando dei por mim, já me via como uma formiga laboriosa e invejosa das cigarras. Confesso também que, hoje, me sinto vingado: alguns de meus amigos, que aprendiam violão enquanto eu estudava, ficavam cercados de garotas fazendo coro de “Me leva amor, por onde for quero ser seu par...” enquanto eles arranhavam Andança, de Paulinho Tapajós, no violão desafinado. Depois elas ficaram mais pragmáticas e passaram a valorizar uma profissão estável na hora de decidir por um possível parceiro (tem um caldinho amargo me escorrendo do canto da boca agora).

Voltando ao fim do mundo. Comportamo-nos como cigarras ou formigas na medida em que nosso futuro é ou não uma prioridade. Se achamos que vamos viver até os noventa, devemos agir de um jeito. Se, no entanto, cremos que vamos morrer jovens e o inverno não nos alcançará, agimos de outro. Ou, pelo menos, pensamos que deveríamos agir assim ou assado, sem transformar a intenção em ação. É certo que, se eu soubesse que o mundo acabaria amanhã, eu não teria estudado ontem, nem agendado consultas para mês que vem. Talvez tivesse ligado para você, para ouvir sua voz uma última vez, ou ouvido aquele meu CD favorito. Talvez andasse pelado na chuva. Ou talvez fosse arrumar umas gavetas, na tentativa de estabelecer um resto de ordem diante do caos iminente.

A sabedoria estaria em fazer com que a formiga e a cigarra interiores sentassem e chegassem a um acordo justo e favorável para ambas, conciliando a previdência e o Carpe Diem. Só não sei se a reunião seria no escritório ou à beira da piscina.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Fogo que arde

Estava no chuveiro (eu penso com mais clareza tomando banho ou fazendo a barba) e me veio uma imagem. Era um dia frio, a água quente era agradável sem, no entanto, arder na minha pele. Sob aquela água que me molhava a cabeça e o corpo, pensei em fogo, em paixão e em amor.

Quem já acendeu uma lareira provavelmente já se valeu de uma daquelas pastilhas de álcool sólido cor de rosa (a cor é bem apropriada) para por fogo na lenha. Facilitam muito as coisas: acendem com facilidade e ardem intensamente por um período curto, que se espera ser suficiente para acender o fogo definitivo. Logo elas se consomem, vão se apagando, e a gente precisa soprar, abanar, mexer uns gravetos e uns pauzinhos para lá e para cá, para que a lenha, aos poucos, comece a crepitar, estalar, chiar e soltar aquele calor intenso que vai se irradiar para aquecer o ambiente. Há, depois, que se cuidar do fogo para que ele não se apague por descuido: acrescentar mais lenha, juntar o carvão que se espalha, abanar mais um pouco para que ele continue a queimar.

Por vezes, a pastilha se extingue sem que a lenha se acenda, e então buscamos outra, às vezes uma terceira. Mas ninguém se aquece com o fogo da pastilha, embora se possa até queimar o dedo com ela. Por outro lado, dá para acender a lenha sem se valer da pastilha de álcool. É preciso técnica mais apurada, um pouco de palha bem seca ou papel, uns gravetinhos finos, outros um pouquinho maiores e, por fim, a lenha. Depois de acesas, não dá para dizer qual fogueira usou álcool e qual não usou no início do processo. Daí que não acho nenhum absurdo o sistema indiano em que os matrimônios são decididos por pais desapaixonados, com base em critérios, digamos assim, técnicos. Nenhum álcool envolvido.

Meus filhos, que estão saindo da adolescência e são jovens adultos, irritam-se e desdenham de minhas opiniões sobre amor e paixão, o que é bem compreensível em função da idade. Mas, no fundo, também me pergunto se não estaria enganado, se estas conclusões valem apenas para mim, não sendo, em absoluto, uma verdade universal. Pode até ser. O fato é que nunca considerei o apaixonar-se como um fim em si. Ansiava, sim, por um amor que me aquecesse, que me fosse confortável, confiável, duradouro e seguro, na medida em que os amores podem ser seguros. Já estive apaixonado algumas vezes, inclusive em algum momento de meus dois casamentos. Assim como fico temeroso de que a lenha da lareira possa não se manter acesa quando o fogo cor de rosa se extingue, temi pela manutenção do amor depois da paixão. Soprei e abanei bastante, e o fogo cresceu e se manteve forte por um bom tempo no primeiro casamento. Persiste intenso no segundo.

Entendo a paixão como uma força natural, poderosa e arrebatadora, nem boa nem má. Compartilha a natureza dos ventos, que tanto podem impelir um barco para o porto seguro como para os recifes e o naufrágio. Não me iludo sobre o poder que uma paixão pode ter no rumo de uma vida, a minha inclusive. Dizia o sábio Santo Ernulfo que ninguém está livre de um mau passo. Então estou alerta, pois que a paixão em si não é o norte para onde aponto o meu barco. Ela pode vir ainda a me arrastar para longe da rota e do rumo. Ao contrário do amor, ela é amoral e não tem nenhum compromisso com minha felicidade. O compromisso único das paixões é com a felicidade das heranças genéticas, sejam elas dos homens, das rãs ou das minhocas. Dirão, revoltados, os românticos e apaixonados de plantão: "Nada disso! A paixão é a expressão máxima da alma humana!" O que você pensa?

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Etevaldo

Tavinho chegou um pouco atrasado, trazendo alguém que a turma do chope das quartas feiras não conhecia.

“E aí, galera! Tudo em cima?”

“Fala, Tavinho! Apresenta o amigo aí pra gente.”

O amigo do Tavinho vestia-se de maneira sóbria, uma figura alta e forte, mas tinha um quê de desengonçado e desconfortável, como quem anda com sapato apertado.

“Gente, esse aqui é o Etevaldo”, apresentou Tavinho enquanto puxava mais duas cadeiras para a mesa. “Na verdade o nome dele é outro, difícil de pronunciar, mas podem chamá-lo de Etevaldo.”

“E então, Etevaldo? Estrangeiro?”, atalhou o Gonzaga.

“Mais ou menos.” Etevaldo tinha uma voz muito peculiar e um sotaque carregado que mais tarde alguém definiu como parecendo da Provence, mas com tempero sergipano.

“Etevaldo veio de fora, num programa de intercâmbio, para conhecer nossos costumes. Vai ficar hospedado lá em casa por uns tempos.”

“Intercâmbio?” perguntou o Afonsinho, levantando uma das sobrancelhas enquanto limpava a espuma de chope do bigodão à mexicana.

“É, ele veio para cá e, na troca, eu despachei minha sogra. Mas é só por uns tempos. Daqui a umas semanas ele volta para a terra dele.”

“Mas de onde você vem, Etevaldo?”

“De Grzmaarbz, que vocês aqui na Terra chamam de planeta XZ14-Y da estrela alfa de Antares.”

“Caramba, longe pacas!”

“E o que você está achando aqui da Terra, Tê?”, perguntou já íntimo o Gonzaga.

“Interessante”

“Muito diferente lá do seu planeta?”

“A paisagem sim, mas o resto nem tanto. A gente vai se adaptando.”

Houve um breve silêncio, e uma certa inquietação se infiltrou no clima. O Almeida, que até então permanecera calado e afundado em sua cadeira, debruçou-se sobre a mesa, coçou a barba e, com a ponta do indicador, empurrou os óculos para mais perto dos olhos. Quando o Almeida fazia isso, o pessoal prestava atenção, pois vinha sempre coisa inteligente:

“A sua civilização deve ser bem mais desenvolvida tecnologicamente que a nossa, se não você não estaria aqui, certo?”

“Certíssimo!” Etevaldo tinha acabado de aprender a usar superlativos e não perdia chance de treinar.

“Deve ser uma civilização bem mais antiga que a nossa também, né não?”

“Antiqüíssima!”

“Então, Etevaldo, eu tenho uma curiosidade grande. Me diz aí: lá no seu planeta o bem venceu o mal? Na sua civilização a solidariedade e a compaixão triunfaram sobre o egoísmo individualista? A verdade e a sinceridade prevalecem sobre a mentira e a dissimulação? Ou vocês nunca sofreram essas mazelas?”

Todos os olhos se voltaram para Etevaldo. Houve uma breve pausa, interrompida quando ele emitiu um som que lembrava um pigarro:

“Bem”, e ele piscou duas vezes. “Tem havido progressos. A nossa Assembléia recentemente instalou uma Comissão de Inquérito, e o nosso equivalente do Ministério Público tem feito diversas denúncias.”

Seguiu-se um silêncio incômodo, mas o Afonsinho, sempre ele, aliviou o ambiente. “Ô Carlinhos”, gritou acenando com o indicador levantado, “Traz mais uma rodada pra gente e pro nosso camaradinha aqui.”

domingo, 8 de maio de 2011

Então é sobre amizade

A amizade guarda diversas semelhanças com camaradagem, mas esta é bem mais trivial. Camaradagem é como uma amizade circunstancial: são colegas de trabalho com quem nos damos bem e com quem almoçamos juntos algumas vezes. É algo que ocorre entre médico e paciente, quando uma consulta deixa de ser uma simples prestação de serviços para se tornar um encontro prazeroso entre duas pessoas em lados opostos da mesa e em pontas opostas do estetoscópio. Entre meus camaradas conto o dono da padaria do bairro, o vizinho de muro, o caixa do mercadinho próximo da nossa filial na roça, meu dentista e tantos outros. Não quero aqui desmerecer o valor das camaradagens. Elas aplainam nossas relações diárias, distribuem pequenas gentilezas, sorrisos, algumas piadas, zombarias sobre futebol e outras amenidades. Trazem um toque de personalidade e calor às nossas relações corriqueiras. Em seu conjunto, são valiosas; azeitam e amenizam a rotina, mas não são propriamente amizades.

Existe ainda a “amizades” utilitárias, como aquelas que estabelecemos com o gerente do banco, com nosso advogado, com o fornecedor ou com o cliente do nosso negócio. Temos amizades utilitárias com nossos sócios e com membros de nossa associação profissional. São relações cordiais que se fazem entre pessoas que podem ser mutuamente úteis em algum momento, presente ou futuro. São trocas de gentilezas e tratamentos privilegiados que as partes esperam, de forma mais ou menos consciente, receber em retribuição quando necessário. Incluem-se aí as relações entre aliados políticos e entre pessoas que se auxiliam para atingir um objetivo mutuamente vantajoso. Não raro, uma das partes confunde este tipo de relação com a verdadeira amizade. Quando um dos dois eventualmente deixa de deter a moeda de troca, quando, por exemplo, deixa de ocupar uma posição influente, a relação deixa de ser vantajosa para uma das partes. Então ela perde sua razão de ser e se desfaz. É quando muitas almas ingênuas se decepcionam e se tornam rancorosas, interpretando como ingratidão quando seus antigos “amigos” se afastam ou lhes viram as costas. Confundiram este tipo de relação utilitária com a verdadeira amizade, a bijuteria com a jóia valiosa.

Bem mais simples definir o que a amizade não é do que delimitar seu perímetro, suas fronteiras e sua origem. Não sei dizer se ela surge espontaneamente ou se pode ser plantada e cultivada. Qual seria o momento fatal, o toque de Midas que transforma um companheiro, um parceiro utilitário ou mesmo um completo estranho em um amigo? A mágica pode começar ao se oferecer uma carona, um sorvete ou um abrigo sob um guarda chuva. A descoberta de um interesse comum, uma afinidade em nossas crenças mais profundas e na maneira de ver o mundo. Ou ainda aquele instante em que, encorajados por uma súbita intuição, sentimos confiança para, pela primeira vez, abrirmos nosso coração sem defesas para alguém, pondo a nu nossas vulnerabilidades e incertezas.

Existem os que têm mais facilidade em fazer amigos. Não é sorte. São os que pescam com muitos anzóis, lançando, sem esforço ou premeditação, iscas de gentileza e preocupação sincera com outro, manifestas em forma de sorrisos e pequenas atenções. Estes terão mais amigos que aqueles que se preocupam apenas consigo mesmos, buscando no outro apenas a platéia necessária para falarem de si, nunca interessados em ouvir e entender. Pois que a amizade exige uma via de mão dupla.

Amizades verdadeiras são raras. Não se pautam por vínculos familiares ou matrimoniais. Podemos ou não termos sentimentos de amizade por nosso pai, nossa mãe, filhos ou irmãos. Tem sorte quem tem no marido ou na esposa um parceiro e um amigo, embora isso pareça ocorrer mais como exceção que como regra.

Diante do amigo não precisamos esconder nossas covardias, mesquinharias e obscuridades. Da mesma forma, não julgamos suas fraquezas e baixezas. A proximidade ou mesmo uma simples carta ou e-mail enviados por um amigo nos aquece, nos aconchega e nos anima. Um amigo é um irmão no plano mais elevado Quem tem um único amigo não está só e é mais rico que aquele que tem muitos companheiros, mas nenhum amigo.

Aos velhos amigos que me lêem, próximos ou distantes no tempo e no espaço, abro meu coração em mão dupla. A meus companheiros, ofereço a oportunidade de fazer florescer alguma amizade tardia, mas não menos valiosa.