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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Pagode do Fim do Mundo

Não é falta de assunto, mas como essa poderia ser a última publicação deste Blog, achei oportuno republicar o "Pagode do Fim do Mundo".

Até dia 22, se Deus quiser!









Apareceu-me um anjo num sonho


Me disse que o mundo já ia acabar.

Caí da cama num susto medonho

E achei que o melhor era me preparar.


Tomei uma branquinha, beijei a vizinha,

Soltei o cachorro, comi vatapá.

Mandei ver no torresmo, cerveja e picanha.

A consulta com o doutor eu mandei desmarcar.


(Refrão)

Por quê?

Porque vai se acabar!

Porque vai se acabar!

Deixa de ser mesquinho, aproveita o restinho,

E senta pra ver o mundo se acabar.


Pensei em ligar pro patrão e avisar

Mas o tempo era pouco pra tanto, afinal.

Torrei a poupança, gastei em brinquedo,

E fiz pra molecada um segundo Natal.

Falei: não precisa seguir pra escola

Comprei bala, pipoca, doce e guaraná.

Organizei uma pelada na praça

É chutando uma bola que eu vou me esbaldar.


(Refrão)


Depois tomei banho e botei um perfume,

Chamei minha nega pra gente deitar.

Não dormi de touca, eu beijei na boca,

Namoramos como antes de a gente casar.

Quando ela dormiu, levantei de mansinho

E fui para a lage assistir o luar.

Peguei o cavaco e fiz esse pagode,

Se amanhã vai dar bode, hoje eu vou caprichar.


(Refrão)

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Prêmio UFF de Literatura 2012

Leitores do Blog,

O conto aí abaixo, "O Contador de Histórias", recebeu hoje o Prêmio UFF de Literatura 2012. Quero compartilhar minha alegria com vocês, que são meu maior incentivo para continuar escrevendo. 

Obrigado pela torcida!

Acesse O Contador de Histórias

domingo, 16 de dezembro de 2012

O Contador de Histórias


Este conto é finalista do Prêmio UFF de Literatura 2012. O resultado sai amanhã, 17 de dezembro.

Seriam alguns dias de viagem ente Paragominas e Altamira. Bem no início, eu abastecendo a carreta num posto à beira da estrada, achegou-se o cabra. Cabeça quadrada, pescoço curto e forte, os cabelos encaracolados escapando por baixo do boné encardido, a malinha castigada e um jeito que, descrevendo só assim, poderia servir para qualquer tipo perigoso, assaltante ou mesmo matador, mas tinha um quê nos olhos escuros que brilhavam um brilho de inocência quase infantil, contradizendo as rugas precoces na testa e sobressaindo por entre as pálpebras apertadas e as sobrancelhas grossas que quase se irmanavam acima do nariz. Anunciou-se Leovaldo, maranhense, com sua licença, vou para a obra da usina grande, não for incômodo, concederia a gentileza, eu ajudo, amarro a carga se soltar, sei trocar pneu, já fui ajudante de caminhão. Nessas estradas temos precisão de confiar e desconfiar, confiando que o Divino ouça nosso rogo para saber a hora certa de uma coisa e de outra. Confiei: “Sobe aí, homem.” Tinha muito chão pela frente e eu andava mesmo desassossegado de cismar sozinho tanto tempo, o pensamento empacado em umas idéias que eu queria não pensar, mas que me rodeavam a cabeça feito enxame de mosca incomodativa. Uma prosa bem que me poderia puxar a atenção de dentro e virá-la para o lado de fora.

De início, asfalto e trânsito livre, tempo bom, conversa leve e pouca, só amenidades. De meu lado, só queria ouvir. Ele aos poucos foi soltando a falação. Ganhara semana de licença para o enterro da mãe. Um segundo derrame depois de ter sido derrubada na cama durante dois anos pelo primeiro. Nesses dois anos só lhe restara na boca uma palavra, que ela repetia e a ela se agarrava como única que lhe restara para se dirigir ao mundo: “tatu, tatu, tatu”.  Era tatu para toda serventia: obrigado, até logo, fome, banheiro, saudade, dor. Só os olhos davam sentidos a cada tatu daqueles. Seis irmãos. O pai deixara a casa, volto pra buscar, as cartas rareadas e o silêncio. O mais velho foi ainda a São Paulo, cidade muito grande, engole um homem sem deixar sinal, voltou sem notícia. Não sabe se tem pai ainda. Falou das cabras, da vez que apanhou de vara porque deixou uma sumir, era ainda moleque. Só acharam a carcaça três dias depois, os urubus terminando a faina começada por maracajá ou suçuarana. A roça de feijão e milho tocada pelos irmãos mais ele, à mercê da dádiva de São José conquistada a custa de muita reza e ladainha no mês de março.

De vez em quando ele cansava de falar, me passava a bola, e tu, homem? Eu falava de estrada, de carga, de caminhão e de patrão, de causos de estrada, deixando uma cerca bem fincada no rumo da prosa, daí não passe.

Já na chegada em Marabá, parada para banho e jantar, cerveja dividida, mais histórias, eu lhe dando linha na pipa. E ela subia alto no céu das lembranças, onde algumas se desmancham, fiapo de nuvem, e outras são tempestade, ou sol e lua, sempre lá. Coisas na história de cada um que passam a fazer parte do que se é, vão moldando esse barro mole, imprimindo cicatrizes, rugas de choro, de dor e de perplexidade, mas também algumas de riso, de saudades de venturas antigas, o que também é uma qualidade de dor.

Lá pelo fim do segundo dia, a carreta sacolejando já no barro, a chuva caía dando medo que a estação seca se findava, arriscado amolecer o chão e nos prender na estrada que nem rato engolido no ventre daquela cobra vermelha riscada na mata. Conseguimos chegar à margem do Tocantins sem precisão de trator de esteira. Estacionei na fila da balsa e desliguei o motor. Toquei a imagem de Nossa Senhora colada em cima do painel, agradecido pela bênção. Só mais dois dias, Mainha, não me falte ainda. Saltamos, ficamos os dois ali, olhando o mundão de água, apertando os olhos para enxergar o outro lado e a balsa ainda longe. Acendi um cigarro virando de costas para o vento e estendi um cigarro, depois o lume para Leovaldo. Ficamos ali, olhando o nada, o pensamento longe, soprando a fumaça para cima de quando em quando. Meu parceiro pareceu desassossegado, coçava muito a barba rala. Reparei uns fios brancos junto às têmporas.

“A gente cresce achando que na vida as coisas são assim, o certo ali, o errado lá, o céu em cima e a terra embaixo, onde é água e onde é chão. O que é de Deus e o que é do cão. Aí a vida vem e embaralha tudo.”

Puxei o último trago e atirei longe a guimba. O dito prenunciava, na certeza, confidência de maior importância. Me aprumei em respeito, procurei esvaziamento de julgar e virei os olhos para Leovaldo.

“Você já foi casado?” Ele forçava a cerca. Concluiu com acerto sobre meu estado de homem sem mulher pela falta de aliança, pelo silêncio, pelo celular sempre desligado. “Digo assim, mesmo sem casar, já teve mulher, já teve casa montada pra modo de viver com ela, ter filho com ela, criar junto?”

Eu não disse nada, mas era como se tivesse dito. “Pois é, eu também já tive, ou tenho, não sei mais. Em Igarapé Grande, terra de meus pais. A gente se gostava desde antes de saber o nome do amor. Desde criança. Nunca pensei em outra, não carecia. E foi para finalmente poder fazer para ela, com ela, um lar, família, essas coisas, que estudei, fiz supletivo de noite, terminei o segundo grau. Fiz curso técnico. Comecei na construção civil, me cadastrei para uma vaga na obra da usina grande. Depois de uns meses me chamaram. Me deu uma alegria misturada com saudade, mas com fé em ganhar dinheiro, montar casa, me fazer um cabra de respeito, e não mais um menino aos olhos dela. Quando voltei para enterrar minha mãe, vinha com uma mistura de sentimento, o luto e uma alegria quase desrespeitosa, que não combinava com a ocasião. E como foi bom estarmos juntos de novo, o futuro ali mais perto, quase que dava pra tocar com a mão. Ela estava carinhosa meio que demais, tive que ralhar pra ela parar com a beijação. Até no velório ela quis me puxar pros fundos da capela, as comadres reparando. Dia seguinte me vem o compadre de meu irmão e me diz umas coisas. Que era para eu abrir o olho, que ficasse por  lá ou levasse Maria da Glória comigo. Que é isso, homem? Me explica, que isso é coisa séria, que não se pode dizer assim como quem conta uma coisa acontecida nos antigamente. Exigi nome, dia, detalhe. Agarrei pelo colarinho, quase bati no cabra enviado do Demo. Tinha um quase sorriso quando me falou, mal conseguia esconder o gosto que tem um infeliz de ver se quebrar a felicidade alheia.

Saí desarvorado, sem rumo, até que me vi na casa da minha finada mãezinha. Por obra do acaso ou de Deus, meu irmão chegou no momento em que eu carregava a garrucha que fora de meu pai, que encontrei ainda enrolada num pano em cima do armário do quarto. Eu tinha um gosto de sangue na boca, meus olhos só viam desgraça no porvir. Não me pergunte quem eu ia matar primeiro, eu só sei que a morte tinha mando no meu coração. Meu irmão quis saber o que era aquilo, gritava para me chamar ao juízo, mas eu não ouvia. Ele então se atracou comigo, ‘não quero ver irmão meu na cadeia’. Caímos os dois e a garrucha disparou. Só então me voltou a presença e eu parei, meu irmão por cima de mim. A bala furou a camisa dele, riscou-lhe a pele e foi bater no meio do quadro do Coração de Maria que minha mãezinha tinha no altar com a vela sempre acesa.”

Um suor grosso brotava nas têmporas de Leovaldo, o peito arquejando um pouco. Os olhos perderam-se por um instante, abertos para fora, mas sem visão no presente. Fiquei ali, mudo, misturando na cabeça a cena contada com cenas de minha própria lembrança, colocando rostos meus nas personagens dele. Pediu-me outro cigarro. Deu umas três baforadas, ficou um tempo para se recompor, e continuou.

“Aquilo me freou os ímpetos, me alargou as vistas, como se me tirassem antolhos. Meu irmão então me tirou, sem resistência, a garrucha da mão. Eu fiquei ali pelo chão, tremendo e chorando de soluço que nem criança. Só bem depois me pus de gatinhas e fui até o altar, sem ousar erguer a vista pro coração furado da Virgem. Pedi perdão e agradeci pra ela e pra mãezinha, que foram as duas que me valeram e me livraram de fazer desgraça. Fiquei uns dias atordoado e sem rumo. Evitei de estar com ela, depois saí escondido da cidade e fui para o rancho de um primo pensar uns dias.  Aí, peguei minhas tralhas, pus na mala e vim para a estrada, no rumo da usina. Não consigo parar de pensar. Meus irmãos e primos se dividiram. Uns dizem pra eu esquecer da Glorinha, que tem muita mulher no mundo. Outros me garantem que foi fraqueza rápida que ela teve, uns goles a mais de cerveja depois da festa do Santo, que era um cabra de passagem, foram só uns beijos, e que ela não pára de chorar desde que eu sumi. Não sei ainda meu rumo. Um homem às vezes descobre que tem que escolher entre a honra e a felicidade, e que não pode ter as duas. Ainda não decidi.

Ficamos ali, olhando o rio e a balsa que surgia agora no horizonte em meio à água do rio e a água que voltava a cair do céu. Foi ficando tudo misturado no mesmo cinza: a água, o céu, a outra margem. Tentei engolir o nó que me apertava a garganta, mas ele ficou ali, teimoso. O desassossego me brotava de novo no peito, feito tiririca brava que renasce sempre, por mais que a gente arranque. Se minha mãezinha não tivesse morrido pra me trazer à luz, se eu tivesse tido um irmão que se atracasse comigo, se a Virgem me valesse na hora que o Tisnado me fechou o coração. Mas eu só tivera instrução de zelar pela honra.

conto transamazônica prêmio UFF de literatura 2012