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terça-feira, 30 de julho de 2013

Diários de Viagem: Cotswold, UK

As paisagens e vilas da série Downton Abbey, que vem fazendo sucesso na TV a cabo, remeteu-me à nossa visita à região de Cotswold em 2010. Havíamos passado alguns dias usufruindo da hospitalidade de nossos amigos Marcus e Tina em Putney, o charmoso bairro na área sul de Londres. Agora, por sugestão deles, rumávamos de carro para o norte. Meus neurônios, depois das dificuldades iniciais, estavam se reprogramando com surpreendente rapidez para dirigir pelo lado esquerdo da estrada e ao volante do lado direito de nosso Ford Focus. Depois de uma visita à veneranda cidade universitária de Oxford, deixávamo-nos guiar pelos comandos de Mildred, a voz britânica e feminina de nosso GPS. Tínhamos feito reserva num bed & breakfast nos arredores da cidade de Chippin Campden, que seria nossa base nas incursões pela região.

The Ebrington Arms
(clique nas fotos para ampliá-las)
No fim da tarde, depois de levar-nos através de estradinhas vicinais impecavelmente asfaltadas que cortavam pequenas propriedades rurais, Mildred deixou-nos diante do Ebrington Arms, uma  pequena hospedagem que vem recebendo viajantes desde 1730, erguida em pedra amarelada no tradicional estilo da região. Fomos alojados em um dos cinco únicos aposentos e desfizemos as malas imaginando o que nos aguardaria no jantar. Ebrington Arms é considerado o segundo melhor “gastro pub” inglês fora de Londres. Na mesa do quarto, a indispensável chaleira elétrica e uma seleção de chás.

Quando descemos, por volta das sete da noite, os dois pequenos salões, ambos com lareira, estavam lotados de famílias de veranistas, provavelmente de Londres ou alguma outra cidade grande, os atuais proprietários de diversas das antigas casas rurais dos arredores. No balcão do bar, adornado com reluzentes torneiras de latão dourado com suas placas esmaltadas reproduzindo as marcas das diversas ales disponíveis na casa, fazendeiros refaziam-se da labuta do dia bebendo generosas pints do líquido dourado. Ales são as típicas cervejas inglesas, Marcus havia me ensinado alguns dias antes em Londres. Ao contrário das lagers, leves, claras e amargas como as cervejas mais populares do Brasil, as ales são mais douradas, menos amargas, ligeiramente doces e mais encorpadas. As muitas centenas de marcas regionais exibem cada uma sua própria combinação de aromas e sabores que misturam frutas e ervas em infinitas harmonizações. Os barris de metal ficam, em geral, alojados no subsolo do pub, e ligados por tubulação de metal às torneiras de onde sai a cerveja na exata temperatura do andar de baixo. O fato de chegarem frias, mas não geladas a ponto de anestesiar o paladar, permite que, em qualquer estação do ano, seja possível apreciar em profundidade cada nota de seus sabores.

Os homens em torno do balcão muito provavelmente não estavam atentos a essas sutilezas. Eram, vim a saber depois, quase todos fazendeiros ou trabalhadores das pequenas propriedades rurais em redor, que vinham bater papo e relaxar depois de cada dia de trabalho pesado. Animado depois de descer uma primeira pint (caneca de cerca de 600 ml),  puxei Suely comigo para o balcão. Pedimos nossa segunda caneca e entramos na conversa. Charlie, um fazendeiro mais ou menos da minha idade, a cor vermelha do rosto queimado de sol realçada pela cerveja, engatou falação. E, claro, acabamos falando sobre o Brasil. Como era de se esperar, os conhecimentos dele sobre nós não iam muito além do futebol, este assunto que derrete a cerimônia em qualquer lugar do mundo, mais ainda na Inglaterra.

Pouco mais tarde, de volta à nossa mesa, resolvi encarar o “prato do camponês”, uma reforçada seleção de linguiças, queijos, pão preto, feijão e batatas assadas. Veio na quantidade ideal para quem tivesse passado o dia ordenhando vacas, lavando o curral, arando o campo e consertando cercas. Para mim era bem além do necessário. Apesar de meu empenho, não dei conta de tudo.

English breakfast
Na manhã seguinte iríamos conhecer as cidadezinhas e vilas centenárias dos arredores. Antes, porém, um típico English breakfast: mais linguiças, feijão doce, tomates assados, queijos, ovos mexidos, pães rústicos de vários tipos, manteiga, leite, café e geleias variadas. E chá com adoçante, para não perder a linha. O gerente do turno da manhã era Johnny Corn. Parecia-se com aquilo que na minha imaginação seria um típico inglês do interior: ruivo, robusto e bem falante. Pedimos informações sobre os melhores lugares a serem visitados nos arredores. Ele nos deu diversas dicas de vilarejos off the circuit e muniu-nos de mapas e sugestões. Aproveitei para perguntar se ele não conseguiria para mim alguns porta copos, aquelas rodelas de cartão, de algumas das marcas de cervejas da região para minha coleção. Ele ficou de providenciar.

O Land Rover série III ainda dá duro em Ebrington.
Deixando a hospedagem, nos deparamos com um velho Land Rover série III, que combinava perfeitamente com o cenário. Aliás, vimos diversos Land Rover pelas estradinhas, na maioria Defenders mas também alguns Discovery. Nenhum deles desfilava nas mãos de motoristas urbanos e suas famílias; eles pegavam no pesado, puxando carretas cheias de feno e esterco ou rebocando maquinário agrícola. Afinal, foi para isso que eles foram desenvolvidos.

Stanway House, em Santnway.
Atravessamos pastos cheios de ovelhas brancas de cabeças negras. Cotswold desenvolveu-se e tornou-se uma das áreas mais ricas da Inglaterra no século XVII graças ao comércio de lã e à florescente indústria têxtil, motor da revolução industrial. A classe média que dela surgiu encabeçou as reivindicações que enfraqueceram os poderes da nobreza e redistribuíram as forças políticas britânicas. A Revolução Gloriosa acabou por submeter a realeza ao Parlamento, no que seria a primeira democracia ocidental moderna. Atravessando os campos e bosques, volta e meia tínhamos que reduzir  a velocidade para dar passagem a famílias de perdizes e até um texugo. Seguindo o roteiro de Johnny, atingimos diversos lugarejos como Snowshill, Upper Slaughter, Lower Slaughter, Stanway e Stanton, além da própria Chippin Campdem.

Cemitério e igreja em Snowshill
Cada vila erguia-se como uma cena de aquarela do século XIX , tendo a igreja ao centro, invariavelmente com um cemitério a seu lado. A curiosidade nos levou a ficar lendo as lápides, muitas com mais de 300, 400 anos, calculando a idade com que cada morador havia ido parar naquelas vivendas da eternidade. Algumas descreviam a causa morte, tipo, “disenteria infecciosa em algum lugar da África”. As vilas menores pareciam adormecidas. Mas, por detrás dos vidros das janelas e das paredes de pedra, havia cortinas brancas, livros, vasos de plantas e brinquedos. Morava gente naquelas casas de cenário, mas era difícil ver vivalma. Um ruído leve denunciou um sacristão trancando atrás de si a porta pesada de madeira nos fundos de uma igreja, como numa cena de filme.


Casamento em Lower Slaughter.
Não, o de vestido comprido branco não é a noiva.
Em Lower Slaughter, o repicar de sinos anunciou um casamento prestes a acontecer. O noivo, jovem oficial do exército de sua majestade, foi saudado solenemente por seus companheiros de caserna antes de entrar na igreja, enquanto as madrinhas, a dama e o pajem, além do padre, aguardavam ainda a noiva, que não tardou a chegar num Rolls Royce. Minha máquina fotográfica disparando e registrando tudo.

À noite, de volta a Ebrington, Johnny entregou-me diversos porta-copos e uma toalha com a logomarca de uma ale, usada para enxugar o fundo das canecas depois de enchê-las, para não molhar o balcão. Em retribuição, ofereci-lhe uma flâmula do Fluminense Futebol Clube que sempre levo nas viagens para ocasiões como aquela, e ele pendurou-a em uma das prateleiras do pub da hospedaria. Johnny, um fã de futebol, torce pelo Stoke City, time que havia retornado havia pouco à primeira divisão inglesa. O Stoke já teve seus dias de glória quando contava em suas fileiras com o lendário Stanley Matthews, um dos maiores astros da história do futebol inglês de todos os tempos, e feito Lord pela rainha.



Johnny Corn, Sir Stanley Mattheus e a flâmula do Tricolor.
De volta ao Brasil, enviei a Johnny um e-mail comunicando que o Fluminense havia se sagrado campeão brasileiro naquele ano. Que ele, então, exibisse com orgulho aquela flâmula. Em retribuição, ele enviou-me uma foto segurando a flâmula tricolor defronte ao monumento em homenagem a Sir Stanley Matthews, na cidade de Stoke. Valeu, Johnny!

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Romance quente em noite fria

O frio que faz esta noite, o som da chuva caindo lá fora, a perspectiva da cama macia e do aconchego do cobertor. O que você pensa em fazer na cama quando a hora da cama chegar? Sim, esqueci-me de dizer, você está acompanhado.

Existem coisas ótimas, prazeres intensos, que a gente (eu pelo menos) não quer todo dia. Cada um tem sua lista: talvez um filé au poivre, uma taça de sorvete de flocos, ou uma torta de morango com chantilly e um expresso. Piscina, praia, viagem de férias. Roupa nova, sapato novo, hotel bacana. Sexo. Não necessariamente nesta ordem.

Mas também existem prazeres dos quais eu não canso. Amores mais serenos e  menos espetaculosos, porém (ou talvez por isso mesmo) eternos: café com leite, pão francês quentinho com manteiga derretendo, feijão com arroz. A cama da gente na casa da gente. E uma boa leitura antes de dormir. Mesmo depois do sexo.


Saber que existe pelo menos meia dúzia de livros ótimos pacientemente me aguardando empilhados na mesa de cabeceira, além daquele ao qual por ora dedico, dá-me a sensação boa de prazeres ainda não gozados, mas cujo gozo antecipo. Permito-me infidelidades: ter uma leitura oficialmente em mãos, enquanto mantenho relações paralelas e fugazes com mais uma ou duas, às quais me entregarei (quase) por inteiro oportunamente. Os livros não são ciumentos. Cada fim de romance clama por outro e mais outro. E dessa relação entre lençóis a cada noite, não me canso nunca.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Coisificar o Outro Justifica Nossa Violência

Uma forma eficaz de anestesiar nossos escrúpulos e nossa consciência é coisificar o outro. Na contramão, ao nos permitirmos nos ver na pele do outro, somos instados a sentir compaixão. A partir do nascimento de meus filhos, as notícias sobre abuso ou violência contra menores, infelizmente tão corriqueiras na imprensa, passaram a ter conotação muito mais dramática para mim. O choro de mães e pais que perdem seus filhos passou a ser dolorosamente compreensível, a dor do outro, de uma forma incômoda, tornou-se próxima e palpável.

Ao longo da História, ver o outro como uma categoria à parte, não reconhecível como humana, tem sido uma estratégia muito bem sucedida para anestesiar as consciências e endossar a barbárie do homem contra o homem. Este truque justificou a escravidão dos povos bárbaros do norte da Europa pelos romanos, a escravidão dos negros africanos pelos brancos, a captura e a venda de negros africanos escravizados por outros negros africanos de tribos distintas. Justificou genocídios como o dos hutus contra os tutsis em Ruanda entre 1994 e 1995 - onde meio milhão de seres humanos igualmente africanos e igualmente negros foram chacinados - e o holocausto judeu pelos nazistas. Permite que vascaínos matem flamenguistas e corintianos matem palmeirenses (e vice versa). Tudo justificado por uma artimanha perniciosa de nossa consciência: Coisificamos o outro e ele deixa, então, de ser humano como nós. Aos olhos do torcedor fanático, o torcedor do time adversário não é alguém como ele; talvez nem seja um ser humano. O soldado adversário na mira do fuzil não é um ser humano, é um inimigo. O pobre diante da arma do policial não é um ser humano, é um bandido. E assim temos nos permitido violentar, massacrar, torturar, causar dor, exterminar e escravizar outros seres humanos. Alguém que tenha acabado de torturar outra pessoa pode ser capaz de afagar carinhosamente um cão logo em seguida, pois se identifica mais com o cão do que com o torturado. Hitler amava seus cães.

Embrenhei-me nessa divagação em função das recentes cenas de violência e agressão contra pessoas e contra o patrimônio de pessoas, e, principalmente, com as diferentes reações em relação a elas. As pessoas parecem dividir-se em duas trincheiras opostas: as que execram os vândalos (com ou sem aspas, como queiram) e exigem mais rigor na ação da polícia contra os manifestantes; e os que justificam e intimamente aplaudem o vandalismo e a violência, inclusive as agressão contra policiais e contra o patrimônio público e privado. Este grupo justifica seu ponto de vista no histórico (real) de violência policial contra os menos favorecidos.

Em sociedades divididas, o que tem sido muito mais a regra que a exceção ao longo de nossa caminhada como civilização, o aparato militar e policial tem sempre sido utilizado pelos detentores do poder na defesa de seus próprios interesses políticos e econômicos. E as regras quase sempre têm sido ditadas pelos poderosos da vez no sentido de proteger seu status quo. Sociedades mais igualitárias nunca são fruto de rasgos de generosidade das classes dominantes, mas sim da organização e da pressão das classe menos favorecidas no jogo pelo poder. Estas, lamentavelmente, quando o conquistam, muitas vezes passam a reproduzir os mesmos vícios dos apeados do comando, no sentido da manutenção de seus privilégios recém adquiridos. A história recente do Brasil está aí e não me deixa mentir.

A polícia reprime os vândalos porque eles são violentos. Os vândalos agridem e destroem em represália à violência da polícia e de seus comandantes. Olho por olho, dente por dente, e vamos todos cedendo terreno em nossas consciências e justificando e aplaudindo a violência de um lado ou de outro conforme nossas simpatias atávicas.

Nos episódios de vandalismo, fico me perguntando quem são os encapuzados. Seriam apenas pitboys e membros de torcidas organizadas sem nenhuma ideologia política? Apenas apologistas da violência pela violência? Seriam ladrões esperando a confusão para roubar e saquear em proveito próprio? Seriam extremistas de esquerda tentando induzir uma reação policial mais enérgica com o intuito de voltar a opinião pública contra as autoridades responsáveis pela manutenção da ordem? Seriam extremistas de direita infiltrados tentando desmoralizar este movimento popular, em sua enorme maioria pacífico, com o intuito de angariar simpatizantes para a repressão policial e para restrições à liberdade democrática?

Duas coisas que eu não compreendo: Uma é o porquê de a polícia não ter reprimido os arruaceiros no Leblon; outra é o porquê de os serviços de inteligência da polícia e a imprensa investigativa não terem sido capazes até hoje de identificar quem são estes mascarados, suas motivações, ideologias e as eventuais organizações por trás deles. Incompetência apenas? Ou falta de interesse em esclarecer? Particularmente, acho que tem de tudo, junto e misturado. Mas também acredito que existe um ou mais movimentos bem articulado por trás, não de todos, mas de boa parte dos arruaceiros. O que assisti há dois dias foi uma formação com característica militar de alguns manifestantes mascarados que me pareceu muito bem ensaiada. Sejam eles de esquerda ou de direita, estes extremistas ideológicos ou bandidos sem ideologia desdenham da lei, da ordem, da democracia e dos meios pacíficos de argumentação. Por minarem o apoio às manifestações legítimas, eles todos têm o meu total repúdio. Merecem os rigores da Lei.

O que não quer dizer, como apraz aos maniqueístas de plantão, que eu seja defensor da violência policial contra as manifestações pacíficas, muito menos das ações covardes e bárbaras de policiais contra moradores como recém aconteceu na comunidade da Maré. Ali aconteceu a coisificação do outro. Muitos, veladamente ou não, acham que o negro pobre da favela não é exatamente um ser humano como o branco classe média ou alta; e que a polícia que entra em favela não precisa obedecer as mesmas regras e ter os mesmos cuidados que a polícia que age na esquina da escola da Gávea ou de Ipanema. Nenhuma captura de bandidos ou apreensão de drogas e armas justifica um único inocente morto ou ferido, seja em que bairro for. Bandido executa, mas policial não pode agir como bandido. Bandido tem que ser preso, julgado e eventualmente condenado. Seja ele morador da Delfim Moreira ou da Maré, saqueador de padaria ou de cofre público.

Somos todos humanos: manifestantes pacíficos, arruaceiros, policiais, universitários, bandidos, intelectuais, peruas ricas, faxineiras pobres. Pretos, brancos, instruídos e ignorantes. Todos buscam o que imaginam ser o melhor para si e para os seus entes queridos, mesmo que os entes queridos sejam só os cães. Muitos seguem por caminhos equivocados, egoístas e violentos. Mas precisamos construir uma sociedade onde todos vivem sob leis e deveres igualitários e tenham oportunidades idênticas na busca pela felicidade e do bem estar.


Sei que estamos ainda longe dessa realidade. Por outro lado, ela já foi bem mais distante. A barbárie está em nossos calcanhares, esperando que autorizemos qualquer retrocesso ou concessão no caminho da liberdade, da justiça e da igualdade de direitos.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O que você seria se...

No periódico da cooperativa de médicos da qual eu faço parte, havia uma coluna de entrevistas que eu achava muito interessante. Ali, um médico cooperado escolhido a cada mês respondia algumas perguntas padronizadas tipo “uma grande alegria”, “uma grande tristeza”, prato favorito, filme favorito, perfume e outras amenidades. Havia também uma pergunta cujas respostas me perturbavam: “Se não fosse médico, seria o que?” Invariavelmente a resposta era: “Médico”. Ficava me imaginando a responder as mesmas perguntas e essa questão especificamente.

Movido pela curiosidade de descobrir a paixão oculta que move cada um, costumo perguntar qual o hobby das pessoas que conheço. Alguns, para meu horror, nem sabem o que é hobby. Aí explico: é aquilo que você gosta de fazer quando não tem nenhuma obrigação a cumprir e tem tempo sobrando. Alguns dizem que gostam de dormir, outros de ler jornal. Então faço outra pergunta parecida: “Se alguém se dispusesse a pagar-lhe um ótimo salário mensal, um valor que você considerasse justo e suficiente para cobrir todas as suas necessidades em troca do trabalho que você mesmo escolhesse, que trabalho você escolheria?” A minha resposta particular? Seria fotógrafo ou repórter da National Geographic. Seria pago para conhecer culturas diferentes, conversar com pessoas de países distantes que compartilhariam comigo suas ambições básicas do corpo e da alma, conheceria e pesquisaria a paisagem e a vida selvagem do planeta. Curiosidade remunerada. Para mim, não tem nada melhor. Como meu ganha pão não é este, procuro viajar e, quando viajo, não penso em compras, mas sim em ver, conversar, sentir, viver, fotografar e registrar na memória, no coração e, às vezes, no papel minhas impressões sobre pessoas, culinária, cultura e paisagens diferentes das de minha cidade e de meu país.

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Com frequência me perguntam como eu consigo tempo para ler, escrever, fotografar, pintar e ainda exercer uma profissão exigente como é a medicina, essa amante tão ciumenta. A resposta é simples: manutenção de minha sanidade mental. E não estou sozinho em minha necessidade. Expressar-se artisticamente e deleitar-se com a expressão artística, independente de qualquer necessidade utilitária, é uma manifestação básica típica do ser humano em todas as civilizações de todas as eras, tão onipresente quanto a manifestação religiosa e, muitas vezes, indissociada desta.


Pessoas ligadas à arte são (quase) sempre interessantes, intelectualmente ricas e espiritualmente profundas. Pessoas que só sabem falar de suas profissões, do quanto faturam com elas e como gastam seu dinheiro são necessariamente chatos de galocha. Frequentar uma oficina literária ou um curso de artes plásticas, além da óbvia utilidade de desenvolver sua própria capacidade de expressão artística, é uma oportunidade única de conhecer gente inquieta, aberta e questionadora. Alguns de meus mais caros amigos eu conheci  nestes grupos. 

No curso de aquarela que frequento atualmente tenho oportunidade de conviver com designers, estudantes de belas artes, arquitetos, ilustradores de livros infantis, pessoas interessadas no desenvolvimento de padronagens para tecidos e fazedores de vinhetas para TV. Além de outros médicos, dentistas, geólogos e engenheiros que simplesmente compartilham o mesmo amor pelas artes e o desejo de expressarem de alguma forma o que eles entendem como beleza. Já argumentaram que, tendo assimilado as técnicas básicas, eu poderia aprender mais sobre aquarela gastando bem menos se simplesmente assistisse alguns dos muitos vídeos disponíveis de graça na internet sobre o assunto. Concordo. Mas a convivência com meus queridos colegas de angústias estéticas não tem preço. Preciso deles para me sentir vivo, e não apenas respirando.

domingo, 14 de julho de 2013

Batalha no Jardim Botânico do Rio

Mais uma vez peguei carona na aula prática de conclusão do curso de aquarela do Renato Alarcão, no Jardim Botânico. Linda manhã de domingo, local que dispensa elogios e ótima companhia. E aquela tentativa de tentar retratar a luz e as cores. A sequência do processo é sempre mais ou menos a mesma: 

 - "Nossa, que luz linda, vai ficar uma ótima aquarela!"

 - "Caramba, é sempre mais difícil do que se imagina. Tem muito detalhe."

 - "Tá ficando horrível."

 - "Eu sou um m... fazendo outra m..."

 - "Tá bom, vamos tentar salvar essa m..."

 - "Chega! Não vou conseguir fazer isso ficar bom mesmo."

 - "Até que, olhando de longe, não ficou de todo mau. Na próxima vou tentar fazer melhor."

Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Watercolor, Acquarela, Aquarelle.

domingo, 7 de julho de 2013

Quatro personagens em busca de um enredo

Larissa Werneck, 20 anos.

Estudante do segundo ano de História da UFF. Usa óculos, tem nariz grande e seios fartos. Nas raras vezes em que solta os cabelos e tira os óculos, fica até bonita. É filha de Denizar Werneck, dono de uma agência de automóveis na Rua Dr. Celestino, e Maria de Lourdes Frazão Werneck, proprietária do salão de beleza “Malu Coiffeur”, no Jardim Icaraí. Larissa não frequenta o salão da mãe, não usa maquiagem e nem sempre usa sutiã. É vice-presidente do Diretório da UFF, onde seus discursos inflamados empolgam até a turma mais interessada no baseado e na cerveja. Liderou seu grupo em todas as doze manifestações e lamenta não ser homem para ajudar na depredação dos símbolos do capitalismo burguês. Já tentou de diversas formas, mas ainda não conseguiu ser agredida pela PM. Comprou “O Capital” de Marx há dois anos, mas não teve tempo de ler. Nutre admiração intensa por seu professor de História do Brasil I, Flamínio Fraga Neto. Tinha intenção de terminar a noite com ele depois do último churrasco do Diretório. Quase conseguiu, mas ele bebeu demais e dormiu na hora H. Acha que não vai passar de ano. Não tem tido tempo de ler ou estudar ultimamente. Quer ser parte da História, e não apenas assisti-la.

Matheus da Silva Costa, 19 anos.

Filho único de Cléa da Silva, secretária de uma escola particular, e de José Carlos Costa, taxista, que Matheus não vê desde quando cursava a pré-escola. Muito estudioso, aproveitou bem a bolsa de estudos a que sua mãe fazia jus e passou para Direito na UFF. Não leva jeito para futebol e não torce por nenhum time. Secretamente apaixonado por Larissa, de quem é colega desde o primeiro grau, nunca se declarou por conta de sua timidez. Zeloso, pretende ser bem sucedido na carreira para poder retribuir tudo o que sua mãe sempre fez por ele. Tentando impressionar Larissa, já leu duas vezes “O Capital”. Pela mesma razão, também leu Hegel, Maiakovski e as biografias de Lenin e Bakunin. Atualmente está lendo a poesia completa de Paulo Leminski. Foi a quase todas as manifestações. Só faltou a duas, porque coincidiam com os dias de prova. Quando vai, está sempre na linha de frente, com um olho na PM e outro em Larissa. Nas horas mais inconvenientes, em meio ao estrondo das bombas de efeito moral, às vezes ouve seu celular tocar: é sua mãe, preocupada. “Está tudo bem, mãe”, responde tossindo com o gás lacrimogêneo. Na última chamada, distraiu-se e levou uma bala de borracha na testa. Exibe a marca como um troféu. Postou a foto no facebook no mesmo dia, esperando pelo menos uma curtida de Larissa, o que não aconteceu.

Flamínio Fraga Neto, 43 anos.

Professor assistente de História, separado de Lucimar Loyola, com quem teve um filho. Não sabe bem se bebe demais por causa da separação ou se Lucimar o deixou porque ele bebia demais. Vem empurrando o mestrado com a barriga há quatro anos. Tinha intenção de ser escritor. Conseguiu dois terceiros e um segundo lugar em oito anos de participações em concursos literários. Teve contos publicados em duas coletâneas. Nunca escreveu um romance. Atualmente coordena o concurso literário anual da universidade. Nas coletâneas do concurso, publica um currículo seu nas duas últimas páginas, onde aparece em foto sem camisa e declara-se um caçador de estrelas. Na verdade, é um caçador de alunas do segundo ano.

Denizar Werneck, 52 anos.


Pai de Larissa e marido de Malu. Filho de corretor de imóveis e professora primária. Abandonou os estudos no fim do segundo grau, quando o pai morreu de infarto. Ralou como contínuo, assistente administrativo e vendedor de carros usados. Extrovertido e bem falante, descobriu-se um ótimo vendedor. Trabalhou como autônomo, juntou dinheiro e hoje é sócio da maior revenda de usados de Niterói. Mora numa mansão em condomínio fechado na região oceânica. Usa cordão e pulseira de ouro, que somados, pesam mais de cem gramas. Orgulha-se de sua trajetória. Assim que pôde, levou a família à Disney. Adora Miami, onde passa férias e faz compras. Sonha secretamente em mudar-se para lá. Alardeia nunca ter votado no PT, mas na verdade votou sim, na primeira candidatura contra Fernando Collor. Não consegue entender Larissa, aquela menininha que está abraçada com o Mickey na foto sobre sua mesa no escritório. Acha que as posições dela têm alguma coisa de pessoal, e a falta de gratidão da filha o deixa magoado. Odeia Chávez, Lula, Dilma, Fidel e Evo Morales. Mas seu maior pesadelo são os fiscais da receita, os abutres que ele tem que alimentar com propina. Também, “se fosse arcar com toda essa absurda carga tributária do país, já teria falido há muito tempo”.