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domingo, 27 de outubro de 2013

Em Caso de Emergência

Eles já tinham começado a bebericar o vinho e a provar as entradas quando Richetti tirou o estojo de veludo negro do bolso interno do paletó e o colocou no centro da mesa, ao lado do candelabro. Seus olhos, brilhando de expectativa,  se ergueram em direção aos de Leila, que não conseguiu deixar de ser óbvia: “Para mim?” Ele respondeu com um sorriso, o olhar ainda fixo no dela. Depois de alguns segundos (os olhos dela mostravam surpresa, mas não foi exatamente um brilho o que ele viu; mas poderia ser só impressão ou excesso de expectativa) ela lentamente baixou o olhar de volta ao estojo clássico, que se destacava contra o branco da toalha. Segurou-o com delicadeza por alguns instantes antes de abri-lo. Percebeu, junto à curiosidade, um certo receio (a caixa de Pandora, o pensamento deslocado esvoaçou silencioso como um morcego na noite). Pressionou com cuidado o centro na parte inferior da frente da caixa. Sim, ela já ganhara uma joia antes, apenas uma. O fecho oculto sob o veludo fez clique, mais uma vibração que um som. Dentro, sob o forro também negro, um par de brincos. Dois pássaros em ouro branco pousavam sobre flores tropicais feitas de gemas azuis, um motivo clássico em uma bela interpretação contemporânea. “Meu Deus!”, ela deixou escapar.

Apenas duas semanas antes Leila fora convidada a participar de um programa de entrevistas num canal de TV. Depois de investir pesado em cursos de medicina estética e gastar montes de dinheiro em decoração e arquitetura no seu consultório dermatológico, boa parte dos quais emprestados pelo banco, as coisas finalmente tinham deslanchado. Uma amiga de infância de sua irmã mais nova, aquela que fizera formação em teatro depois de perder dois vestibulares para direito, emplacara recentemente um bom papel secundário na novela das seis. Essa moça procurou-a no consultório, preocupada com sua acne renitente aos vinte e poucos anos. Caso simples, bom resultado. A moça indicou-a para suas antigas colegas de “Malhação”. Aos poucos, atrizes e atores famosos foram aparecendo e ela começou a viver seus minutos de fama, com direito a uma capa na Revista de Domingo. Bom para os negócios. No telefonema da TV informaram-lhe quais seriam os outros convidados do programa. A estrela da tarde seria Rodrigo Richetti, o escritor fenômeno, o intelectual que vinha conseguindo a façanha de vender centenas de milhares de livros sem abrir mão da qualidade literária, o maior fenômeno editorial brasileiro desde Paulo Coelho. Aqueles que automaticamente ligavam seu nome a vaidade e futilidade em função de seu ganha-pão dificilmente suspeitariam ser Leila uma leitora voraz. Se pudesse escolher uma outra profissão, Leila secretamente gostaria de ser crítica literária.

A perspectiva de conhecer Richetti pessoalmente a deixou excitada. Afinal, lera três de seus livros e gostara bastante. Romances psicológicos, personagens complexos, angustiados e profundamente verossímeis vivendo enredos envolventes. Ele era presença já anunciada na próxima Flip e, de forma talvez inédita, seu nome vinha sendo divulgado, com o mesmo destaque que o de convidados estrangeiros pelos organizadores da feira. Realmente, um ótimo escritor nacional, que conseguira quebrar uma sequência de romances contemporâneos ingleses e americanos na cabeceira de Leila.

À medida que se aproximava o dia da gravação, os pacientes daquela próxima quarta à tarde já devidamente remarcados, ela começou a se dar conta de que seu desejo em conhecê-lo talvez não se resumisse às motivações literárias. Lera tudo que conseguira achar na internet sobre Richetti: resenhas, entrevistas e artigos, mais dois vídeos de entrevistas no Youtube. Richetti era alto, claro e ligeiramente calvo, os cabelos desalinhados e louros um pouco crescidos na nuca quase chegavam aos ombros, um estilo que lhe pareceu mais fruto de descuido do que algo estudado. Sob a testa grande, achou seus olhos pequenos, inteligentes e penetrantes, mas o arco das sobrancelhas, ligeiramente arqueados para os lados sugeriam timidez e desamparo. Leu que ele vinha de uma família abastada de industriais do ramo de cosméticos. Fora casado com uma artista plástica de renome, da qual estava separado havia alguns anos. Uma filha já crescida e nenhuma badalação no currículo, uma personalidade reservada, concluiu.

Leila também havia desfeito um casamento curto e não tivera tempo de ter filhos. Depois, vivera dois casos que se poderiam considerar sérios. O segundo, um pouco mais longo, terminara de forma melancólica depois que ele descobriu sofrer de um grave problema de saúde. Isso havia mais de cinco anos. Desde então seus pensamentos estavam todos focados no trabalho. A bem da verdade, a não ser aos domingos e na meia hora dos dias de semana, antes de adormecer, quando supria sua lacuna emocional com literatura. Vez por outra pensava se algum dia voltaria a ter um envolvimento sério. Era uma mulher bonita aos quarenta, bem conservada e bem tratada, como, aliás, exigia a profissão de zelar pela beleza alheia. Os melhores cremes para o rosto e para a pele, os melhores xampus, horas semanais no salão de beleza e na academia. Ficar remoendo esperanças em relação a seu futuro afetivo só servia para causar sofrimento, além de ser completamente inútil, melhor focar no trabalho e não pensar no assunto, se tivesse que acontecer, que acontecesse, racionalizava. Ter-se tornado conhecida e seu relacionamento profissional com pessoas verdadeiramente famosas tivera o efeito paradoxal de afastar os homens. Até mesmo as abordagens daqueles que visavam relações de curtíssimo prazo, que nem eram tão frequentes quanto se poderia imaginar, escassearam ainda mais.

No dia da gravação Leila se viu demorando mais do que o habitual na escolha do que vestir, mesmo levando-se em conta que iria aparecer na televisão. Um vestido parecia curto demais e um pouco vulgar; outro, sério demais, lhe daria uma aparência excessivamente velha; um terceiro era por demais sem graça, e assim por diante. Sentia uma excitação estranha que só conseguiu decifrar quando escolhia a calcinha que usaria naquela tarde. Sim, era isso: ela não se sentia tão excitada arrumando-se para uma ocasião desde a última vez em que saíra para o primeiro encontro amoroso com seu último namorado. Achou aquilo engraçado, deu uma risadinha nervosa, a comédia daquela situação. Por causa do Richetti, que ridícula. Acabou optando pelo vestidinho cinza, cuja cor discreta fazia contraponto com o corte justo e o decote amplo. Sapatos altos bicolores em cinza e preto e bijuterias douradas, bem vistosas, completariam o visual.

Os quatro convidados daquele programa, dispostos pela produção, sentavam-se intercalados com três jornalistas, a veterana âncora do programa no centro do semicírculo. Richetti ficou posicionado quase diametralmente oposto a Leila. Ele vestia-se com discrição e elegância, blazer bem talhado sobre camisa branca sem gravata. Pessoalmente, Leila avaliou-o: parecia mais novo do que os seus 54 anos que ela descobrira ao fazer o dever de casa.  Enquanto aguardavam o início da gravação, percebeu os olhos dele voltados para ela ocasionalmente, mas ele sustentou rapidamente o olhar apenas uma vez. Um sorriso discreto e hesitante, que fez com que as pernas dela se descruzassem e cruzassem novamente de forma automática, aquele reflexo medular ancestral que as mulheres não conseguem controlar.

Ela foi a segunda a ser entrevistada e a que recebeu o maior número de ligações e mensagens de texto da audiência. Richetti, a estrela da tarde foi o último. Seu currículo sucinto e os números robustos de suas vendas foram relatados pela âncora. Depois, as perguntas dos vários jornalistas foram se sucedendo de maneira óbvia e previsível. É incrível a resignação dos escritores em responder sempre as mesmas indagações aborrecidas, Leila pensou: o quanto seus livros têm de autobiográfico, se tal personagem seria seu alter-ego, como é seu processo criativo, as baboseiras de sempre. A certa altura Leila pediu a palavra e fez uma pergunta sobre um aspecto sutil que permeava os três romances dele que ela havia lido: o conflito entre as pulsões atávicas, muitas vezes cruéis, e a determinação individual das personagens de seus livros. Ele ergueu-se na poltrona: “Ótima pergunta!”. Pareceu ser a primeira que ele realmente teve interesse em responder. “Ela realmente leu as palavras e entendeu as entrelinhas”, pensou.

Terminado o programa, ele só tinha olhos para Leila e sentiu um estremecimento quando ela se aproximou: “Pena eu ter-me esquecido de trazer um de seus livros para um autógrafo, que idiota eu sou”. “Podemos providenciar isso numa outra ocasião, não?” disse ele mordendo a isca. E trocaram seus endereços de e-mail e perfis na rede social.

Seguiram-se dias de bate papo virtual, naquele enlevo que só as paixões que estão ainda a se acenderem proporcionam. A cada intervalo entre duas consultas, a cada sinal fechado, madrugada adentro e logo de manhã cedo Leila e Richetti faziam incursões, explorando o terreno e expondo o próprio flanco ao inimigo, um jogo de palavras que extraía de um e de outro o melhor de sua inteligência, bom humor e erudição, parágrafos que caberiam em um roteiro de filme noir estrelado por Humphrey Bogard e Ingrid Bergman. Leila acordava sorrindo e deitava-se sonhando acordada. O mundo parecia mais colorido, os clientes mais simpáticos, os contratempos menores. O sorriso brotava-lhe com facilidade incontornável, quase irritante. Isso não passou despercebido a Fátima, sua secretária. “Viu o passarinho azul, doutora?” Depois daquela semana em que cuidou de sentir o anzol bem cravado, marcaram um encontro. Ele viria de Curitiba onde morava para um evento cultural, outra entrevista com plateia em uma livraria.

Dois dias arrastaram-se intermináveis até a data do encontro. Leila chegou cedo ao anfiteatro e sentou-se na cadeira do canto na primeira fila, um misto calculado de discrição e exposição aos olhos dele. Richetti entrou no palco pela coxia, os olhos aflitos varrendo a plateia até localizá-la. Depois, mal conseguia concentrar-se nas perguntas, os olhos desviando-se para ela a cada instante. A certa altura, um chato tentou roubar os holofotes com uma daquelas perguntas que são menos interesse legítimo na resposta que discurso narcisista, o que levou o moderador experiente a encerrar a entrevista com a resposta padrão para essas situações: “Então, fica aí a pergunta. Muito obrigado pela participação da plateia, etc, etc.”

De pé, Leila esperou pacientemente até que ele se livrasse dos cumprimentos, tapinhas nas costas, pedidos de autógrafos e fotos diante de aparelhos celulares ao lado de fãs com sorriso de aeromoça. A fama cobra seu preço, pensou entre ansiosa e divertida. Finalmente, puderam se aproximar e ficar frente a frente, os corpos alinhados, paralelos, como costumam ficar os corpos quando o foco no outro é total. A respiração de ambos ligeiramente mais rápida, o sorriso recusando-se a ser contido. “Como vai?” “Como vai você?” “Você está ainda mais linda hoje.”

Leila indicou um restaurante mediterrâneo discreto e de boa cozinha. Beberam vinho e conversaram longamente. Richetti estava maravilhado. Ela transitava com desenvoltura por literatura contemporânea e pelos clássicos, inclusive por alguns autores que ele não tinha lido. Voltaram a falar sobre arte, viagens e tangenciaram com prudência alguns temas políticos. Leila tinha opiniões e curiosidade sobre quase tudo, era uma interlocutora sagaz e excitante, não apenas do ponto de vista intelectual. “Que achado!”, pensou Richetti. Ao fim do jantar ela sentia-se impressionada com os modos gentis, a simpatia discreta e a vasta cultura artística dele. Parecia que teriam assunto para décadas de conversa interessante.

A noite fluiu inevitável como um rio para o apartamento dela. Na sala, Leila acendeu apenas o abajur ao lado do sofá. Richetti elogiou a decoração enquanto esquadrinhava o ambiente, ela quase podendo ouvir o cérebro de escritor dele trabalhando enquanto fazia inferências e tirava conclusões de cada móvel de cada quadro, de cada objeto de decoração e lembranças de viagens. Examinou a prateleira onde estavam os CDs “com a atenção de um detetive em cena de crime”, ela pensou ao relembrar a cena mais tarde.
“Ora vejam, você também gosta de ópera? Ou herdou os discos de alguma tia?”

“Não, eu realmente gosto. Mas só ouço quando estou sozinha.” O que não é nada raro, completou mentalmente. Só falta ele gostar de ópera também.

“E você, também curte uma ópera?”

“Gosto de música clássica em geral, não especificamente ópera. Quais as suas favoritas?”
“Quem me emociona mesmo é Wagner. Aquela coisa épica, cheia de som e fúria, mais do que o romantismo choroso dos italianos.”

Depois ele esquadrinhou os retratos no aparador. Fotos em sua maioria de viagens com as amigas. Ele deteve-se em um porta-retratos que continha uma foto de família tirada uns cinco anos antes no aniversário de oitenta anos uma tia. Quis saber quem era cada um. Por último, perguntou quem era aquele rapaz bonito que a abraçava.

“Esse é o Betinho, meu primo, o filho mais novo da tia Clara.”

Depois houve um interesse excessivamente demorado, quase irritante, na estante de livros. Ela enfiou-se entre ele e as prateleiras olhando-o fixamente, a boca entreaberta.

Quando a manhã começou a invadir o quarto, Leila já estava acordada. Folheava com desinteresse um dos livros que tinha na cabeceira. Repassava as emoções da noite e as chances de as coisas se tornarem sérias dali em diante. Ele tinha as qualidades raras que ela prezava tanto. Na verdade, muitas vezes ela oscilara entre pensar serem esses predicados essenciais em um homem e achar que estas eram exigências pouco práticas para quem deseja a sério livrar-se da solidão. Ele parecia estar verdadeiramente interessado, e não apenas no seu corpo. Talvez ele pudesse ter demonstrado de forma mais enfática o interesse físico, ter sido um pouco menos gentil entre os lençóis. A certa altura pareceu-lhe que ele a olhava como quem olha respeitoso e embevecido um quadro de um grande mestre, como quem manuseia uma porcelana antiga ou um manuscrito raro. Talvez fosse apenas o jeito dele, o tempo dele, uma noite apenas era muito pouco para conclusões definitivas. O saldo, afinal, era extremamente feliz. Ela suspirou, sorriu e passou a mão pelas costas dele.

Poucos dias mais e ela desembarcava no aeroporto de Curitiba. Ele a aguardava no portão de desembarque com um enorme e quase embaraçoso buquê de flores tropicais. Era a vez de ele mostrar a ela onde morava, disse já na direção do sedã quatro portas, enquanto deixavam o estacionamento.

A sala do apartamento no quarto andar era ampla e clara, e tinha dimensões que não condiziam com a condição de homem sozinho do proprietário. Diversas telas a óleo e acrílico, esculturas e gravuras (inclusive duas de autoria da ex-esposa, ela notou) adornavam com elegância discreta o cômodo voltado para um parque e para o nascente. Num cômodo anexo, a mesa de trabalho atulhada e uma ampla estante em madeira escura. Ela correu as lombadas com a ponta do indicador, comentando excitada quando reconhecia um título ou um autor que já tivesse lido ou desejasse ler. Richetti a observava embevecido de uma certa distância, a mente oscilando entre observar o corpo de Leila, o som de sua voz e um sentimento narcísico em exibir-se através de seus livros, seus quadros, sua casa.

xxxxx

“Gostou?”

“São lindos! Meu Deus, Richetti, isso é uma joia. Sinceramente, meu amor, não precisava”. Tentava imaginar quanto teriam custado. Certamente uma pequena fortuna.

“Coloque os brincos, vamos. Estou há dias imaginando você usando-os”

Enquanto tirava os brincos que usava, Leila sentia-se confusa. Qualquer mulher no mundo estaria radiante com o mimo, mas aquela demonstração de prodigalidade em tão pouco tempo de relacionamento a constrangia. Ele estava inteiramente empenhado naquela relação tão fresca, tão recente, enquanto ela tinha suas reticências, que ela considerava perfeitamente sensatas àquela altura dos acontecimentos. Um descompasso que a incomodava. Mas afinal, de que ela tinha medo? Que mulher não sonha, quantas vezes ela própria não sonhara em diversas fases da vida, em ter um homem assim apaixonado a seus pés? Um homem culto, gentil e educado. E de posses consideráveis. Não que ela precisasse de alguém que a bancasse financeiramente, tinha orgulho confesso de seu sucesso profissional, de sua independência financeira. Mas essas últimas semanas não tinham sido tão agradavelmente intensas? Não lembrava se alguma vez na vida tinha vivido tão intensamente do ponto de vista emocional. Provavelmente na adolescência, mas não conseguia mais se lembrar se isso fora verdade um dia. Que mal poderia haver em entregar-se a esse homem, viver assim ao sabor da emoção, deixar-se apaixonar, enlouquecer um pouco que fosse, por algum tempo que fosse. Quantas mulheres na sua idade podiam sequer cogitar viver essa experiência a essa altura da vida? Quantas vezes ela própria concluíra ser melhor se contentar com a vida amorosa como alguma coisa da qual ela já tivera seu quinhão e pronto, que se desse por satisfeita e conformada?

Foi quando Richetti pôs a mão novamente no bolso interno do paletó, agora do lado direito. Sacou um envelope branco, que entregou a Leila.

“Que é isso?”

“Abra, meu amor.”

Dentro, duas passagens para Buenos Aires para dali a uma semana e uma folha impressa em computador que ela não conseguiu identificar de que se tratava de imediato. Ele não esperou que ela decifrasse o texto em espanhol.

“Duas entradas para assistirmos juntos ‘O Holandês Voador’ no Teatro Colón, em Buenos Aires. Wagner, Café Tortoni, nós dois dançando tango. Que tal?”

Os lábios de Leila se entreabriram, mas ela não soube o que dizer. Confusa, seus olhos pararam na placa vermelha, pequena e luminosa que indicava a saída de emergência do restaurante, que ela via bem acima do ombro esquerdo dele. Seus olhos permaneceram fixos ali, até que ele se voltou para trás, tentando saber o quê ou quem prendera sua atenção.


“Que foi, minha querida? Viu alguém conhecido? Quem é?”

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Obrigado, Nick

Como todas as cidades pequenas no litoral ao sul de São Francisco, Morro Bay tem uma marina. A marina de Morro Bay, como tantas outras à beira do Pacífico, tem restaurantes de frutos do mar, vento frio, gaivotas gritando sem parar, pelicanos alisando as penas e leões marinhos fazendo barulho enquanto pegam um solzinho sobre as pedras do quebra-mar. E, claro muitos barcos atracados no píer: de turismo, de lazer e de pesca, grandes e pequenos.

Era de tardinha. Eu e Suely passeávamos despreocupados, tirando fotos, curtindo a vista e o sol poente. Então, demos com o monumento. Bem, não era exatamente um monumento. Na verdade, ele nada tinha de monumental. Fundido em bronze, está aparafusado no calçadão bem defronte ao atracadouro. Não faz loas a ninguém que tenha liderado exércitos e, de forma heroica, esmagado inimigos numericamente superiores. Não homenageia nenhum político ou estadista, nenhum grande artista. Ninguém que tenha feito uma grande descoberta científica ou mudado o rumo da História. Ele apenas rende homenagem e pretende estender para gerações futuras a lembrança de Nick, um mecânico de barcos.

Estávamos admirando e fotografando a escultura quando o dono de um dos barcos, nos seus sessenta e muitos, pele avermelhada de sol, cabelos e bigodes fartos e brancos, se acercou de nós e, sem que pedíssemos, nos contou sobre Nick: “Pau para toda obra, para ele não tinha tempo ruim. Sempre disponível, sempre bem humorado, ótimo mecânico e ótimo caráter. Se você o tivesse conhecido entenderia a homenagem”, disse.

A escultura em bronze reproduzia não Nick em si, mas o banco surrado de sua pick-up em todos os detalhes: os gomos do estofamento, a logomarca da Ford no encosto, o forro rasgado do assento, a espuma aparente e gasta do lado do motorista, que o traseiro e as coxas de Nick esculpiram lentamente ao longo de anos de idas e vindas entre sua casa, as lojas de peças e o píer.  Algumas molas começavam a dar o ar da graça através da espuma puída. Do lado do carona descansavam peças, ferramentas, latas de graxa e de óleo. No encosto, uma placa dizia apenas “Obrigado Nick, 1946 – 2008”. A escultura fora encomendada por seus antigos clientes a um artista local, que usou como molde o banco original da pick-up, cedido pela família do falecido. Num mundo de tantas homenagens faraônicas a personalidades controversas, como “Ponte Presidente Costa e Silva” ou “Rodovia Presidente João Goulart”, aquela destoa. Não foi encomendada pelo Estado, não tem intenções ideológicas nem corporativistas, não pretende puxar o saco de poderosos. Apenas homenageia um cara legal.


Fiquei imaginando como seria Nick: macacão surrado, boné encardido, tênis ou botinas velhas, talvez uma barba grisalha por fazer, cheirando a graxa, óleo diesel, maresia e peixe. Seu rosto se iluminando ao ver um grande motor central voltando a girar, roncar e soltar fumaça depois de ter suas engrenagens abertas e retificadas por seus dedos calosos de unhas encardidas. Imaginei-o no fim do dia tomando uma cerveja com seus clientes em um daqueles bares, riso frouxo, ouvindo histórias de mar e mentiras de pescadores, comentando a temporada ruim de seu time de futebol ou de baseball antes de ir para casa. Ou talvez embarcando no meio da noite para socorrer um barco a deriva no meio do Pacífico. Uma alma elevada, humilde e gentil. Lembrei-me de Donald Shimoda, o mecânico, aviador e messias nas horas vagas, do livro “Ilusões”, de Richard Bach. Talvez ele fosse isso mesmo, um messias que se revelou a um pequeno grupo de pescadores. Ou talvez fosse apenas um cara legal. O mundo precisa menos de heróis e estadistas, e mais disso: caras legais. Obrigado Nick.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Crônicas Californianas 2: São Francisco

(clique nos links em "laranja" para ver cenas dos filmes)

Entre as grandes cidades americanas, apenas Nova York rivaliza com São Francisco em termos de apelo cultural e charme, em minha opinião. E sendo relativamente pequena (800 mil habitantes) quando comparada a outras grandes cidades de destino na América, torna-se mais amigável e acolhedora. A simples perspectiva de ver a Golden Gate Bridge já era razão mais que suficiente para desejar conhecê-la. Ver de perto a locação onde Kim Novak se joga nas águas geladas da baía bem debaixo da ponte e é resgatada por James Stewart em “Vertigo” (“Um Corpo Que Cai”), descer pelas mesmas ladeiras e lombadas por onde Steve McQueen fez uma das mais alucinantes perseguições automobilísticas da história do cinema em "Bullit" (duelo de V8s: Charger x Mustang) ou ficar defronte a uma das casinhas vitorianas onde Robin Williams foi trabalhar como babá dos próprios filhos caracterizado como Mrs. Doubtfire em “Uma Babá Quase Perfeita” eram outros desejos a serem realizados. Gosto de fazer e recomendo que o leitor também experimente: assistir quantos filmes puder ambientados na cidade ou região que se vai visitar, seja ela Paris (“Antes do Por do Sol”), Nova York (“Tiros em NY”, de Woody Allen) ou a Toscana (“Sob o Sol da Toscana”) por exemplo. É uma maneira de preparar o espírito e ambientar o coração com antecedência. Quando finalmente nos vemos na mesma locação, a sensação é de estarmos vivendo uma cena de filme, só que real.

Além de cenários famosos, São Francisco tem uma história movimentada. Foi fundada a partir de uma missão de padres franciscanos espanhóis  junto à povoação de Yerba Buena em 1776. Já anexada pelos Estados Unidos depois da guerra contra o México, foi sacudida pela corrida do ouro quando este foi descoberto logo ali na Sierra Nevada em 1849 (daí o nome do time de futebol americano local ser “San Francisco 49ers”). Aventureiros de todo o mundo acorreram à Califórnia, inclusive milhares de chineses e japoneses. Outro sacolejo, este mais violento, aconteceu em 1906: o famoso terremoto que, com o incêndio de três dias que se seguiu, destruiu três quartos da cidade. Rapidamente reconstruída, São Francisco foi a principal sede naval americana no Pacífico durante a Segunda Grande Guerra. Todos os japoneses foram então expropriados e trancafiados em campos de concentração (poucos retornaram à cidade depois) e uma forte migração negra do leste veio trabalhar nos estaleiros. Depois da guerra, a cidade, já tão cosmopolita, passou a atrair artistas, músicos e escritores, inclusive muitos daqueles que estavam na Europa nos “anos loucos”. Estes lançaram os alicerces do que viria a se tornar a capital americana da contracultura, da geração “beat” dos anos 1950, dos hippies dos 1960 e da comunidade gay americana nos anos 1970-80. Talvez não seja apenas coincidência o nome do primeiro povoamento ter sido Yerba Buena (erva boa).


Cada etapa dessa história conturbada deixou sua marca: o centro da cidade exibe arranha-céus à prova de terremotos e casinhas vitorianas no mesmo enquadramento de câmara. A maior Chinatown americana, onde se pode comprar comidas que a maioria de nós jamais poria na boca, como pepino do mar seco, faz divisa com North Beach, o bairro italiano (a única fronteira sino-italiana do mundo) com seus inferninhos e bares de música ao vivo. Castro, o bairro da comunidade GLBT, sediou as pioneiras manifestações na luta pelos direitos civis dessas minorias e foi cenário da primeira passeata do orgulho gay do mundo.  Fica aos pés dos Twin Peaks, imortalizados pela série de David Lynch. Em suas ruas pacatas, as vitrines exibem “consolos” em todas as cores, texturas e tamanhos emoldurando cartazes de shows eróticos, tudo ao lado de prosaicas mercearias de bairro e cafés convidativos. Um deles homenageia Harvey Milk (imortalizado no filme “Milk”), o primeiro político assumidamente gay dos Estados Unidos. Em Ashbury Heights o "flower power" está vivo e se mexendo: lojas de ervas exalam baratos, outras vendem saias ciganas e camisetas "tie&die" ao lado de estúdios de piercing e tatoo. Tem ainda a livraria Bound Together, especializada em títulos anarquistas e afins. Mais badalado, o Fisherman’s Wharf, antigo entreposto pesqueiro, virou uma espécie de arapuca-de-tirar-dinheiro-de-turista, mas dali se pode partir em uma bicicleta alugada até a Golden Gate, inclusive atravessando-a em direção a Salsalito, se você estiver disposto e em forma. Ali também se pode saborear a cremosa e autêntica “clam shouder” (sopa de frutos do mar) servida em cuia de pão italiano na padaria Boudin, onde pães que seguem a mesma receita trazida da Itália na época da corrida do ouro perfumam todo o quarteirão e provocam filas que se estendem pela calçada quase o dia inteiro. Dezenas de leões marinhos descansam e fazem barulho nas balsas de madeira construídas especialmente para atraí-los. Abstraindo o burburinho dos turistas, é possível saborear de graça a brisa fria e úmida que vem do Pacífico para formar os densos nevoeiros que alternadamente encobrem e revelam as cores avermelhadas da Golden Gate, ouvir o pio incessante das gaivotas, apreciar a visão dos veleiros que passam em alta velocidade e o voo em fila indiana dos albatrozes diante da ilha de Alcatraz, tudo isso sem gastar um "dime".

(continua)

Casas vitorianas (essas são as "Painted Ladies") e arranha céus.

Alimentos inusitados em Chinatown.

Bairro Castro: O estandarte do arco-íris foi criado em São Francisco.

O flower-power ainda manda em Ashbury Heights.

O novo e o velho em harmonia.

Fim de tarde próximo ao Fisherman's Wharf: curtir a brisa, a vista de Alcatraz, os veleiros e as aves marinhas é de graça.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Porque não Miami?


Miami: trocando o amarelo gema dos táxis por um tom mais canarinho,
bem que dava para passar por Barra da Tijuca
Miami é, provavelmente, a cidade americana favorita dos turistas brasileiros. Estive recentemente por lá por conta de um congresso médico e, até certo ponto, sou capaz de entender as razões dessa escolha dos patrícios. Em Miami, quando se entra em uma loja ou se aborda alguém na rua, nunca se sabe se a conversa vai fluir na língua de Shakespeare, de Cervantes, de Camões ou em uma mistura amigável e inacreditavelmente compreensível dos três idiomas. Uma Babel às avessas. Miami é quente, não neva nunca (tem lá seus furacões, é verdade), é plana, à beira-mar e tem avenidas largas que nos remetem de certa forma à Barra da Tijuca. E ainda permite que se saboreie um bom feijão com arroz em um dos muitos restaurantes cubanos. Negros, morenos e branquelos, em todas as suas nuances, circulam democraticamente misturados a turistas de todo o mundo em Miami Beach. Dá para suar a camisa no sol, ver gente em roupa de banho na rua, pegar uma praia de areia branquinha e nadar em um mar de temperatura agradável. Brasileiros abarrotam os shoppings de Miami comprando camisas, calças, vestidos, tênis, meias, carrinhos de bebê, maquiagem e o que mais se possa enfiar em uma mala tamanho jumbo, torcendo para que, quando a hora da verdade chegar, os orixás distraiam a atenção da Receita no momento de enveredar com cara de pôquer pela fila do “nada a declarar” na aduana brasileira.  Então, estaremos de volta à nossa Pasárgada, doidos para desfilar a muamba ornada com a indefectível bandeirinha azul, vermelha e branca da Tommy Hilfiger pelas passarelas tupiniquins. Miami é a América onde nos sentimos mais à vontade e menos estrangeiros.


Tudo bem, eu entendo. De minha parte, quando quero ver gente usando Tommy Hilfiger em shopping center economizo a passagem de avião e fico pelo Barra Shopping mesmo.

Diários de Viagem: Crônicas Californianas

Nas próximas semanas pretendo dividir com os leitores as impressões causadas pelo Estado do Sol neste viajante bissexto. Não tenho nada planejado em relação á forma. Algumas crônicas, fotos, relatos curtos, talvez uma ou outra aquarela ou colagens. Nada que pretenda esgotar o assunto, claro. Só o que ficou grudado em mim depois de duas semanas neste estado cativante e cheio de diversidade. Californication, California dreaming, yes I'm going to California in my mind, being sure to wear some flowers in my hair. Vem comigo, no melhor estilo Goulart de Andrade.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Morris

Morris car 1950