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domingo, 30 de março de 2014

Ah Mueck!

Máscara II, Ron Mueck no MAM - Rio de Janeiro
Sentado próximo à proa, ele está só e está nu. Ele é desproporcionalmente pequeno ou será o barco que é desproporcionalmente grande?  Não há remos, nem leme, nem vela, nem mastro. Ele está à deriva, e os braços cruzados do homem demonstram que ele sabe que não há o que fazer ou como lutar. Seu destino e seu futuro escapam-lhe completamente ao controle. Olho mais uma vez para seu rosto enrugado: um rosto quase familiar, que poderia ser do vizinho ou de um velho professor, talvez de meu avô quando eu era criança. Estou preparado para ver estampado naquele rosto o desespero ou a conformidade. Mas ele me desmente: os olhos estão vivos e atentos, o pescoço um pouco esticado para diante, como que tentando enxergar algo que está mais à frente e que ele não consegue ainda distinguir o que é. Será o fim? Será a esperança?

Já o enorme casal sob o guarda-sol colorido a princípio desperta pena. Eles são velhos. Estão em alguma praia, provavelmente cercados de corpos jovens e firmes como os deles já foram, mas nada indica que algum dia tenham sido belos. Os cabelos dele são ralos e os dela são curtos e grisalhos. Nenhum sinal de vaidade, a não ser as grossas alianças douradas, apertadas demais naqueles dedos nodosos que já foram mais magros um dia. Ele repousa de costas na areia imaginária, a cabeça apoiada nas pernas e nas varizes das pernas da companheira. Lembro-me, como contraponto, de “O Beijo”, de Auguste Rodin, o jovem casal de formas perfeitas que se enlaça em um beijo intenso e sensual, expressão perfeita e ideal do arrebatamento da paixão. Mas, então, percebo que o velho senhor tem um quase imperceptível sorriso no canto dos lábios, que transmite felicidade discreta e convicta, oposta à dos selfies escancarados a que sou submetido diariamente nas páginas das redes sociais. Contorno os dois e descubro que o braço direito do homem, o cotovelo apoiado no chão, segura delicadamente o braço de sua companheira. Procuro os olhos dela: cercados de rugas, eles repousam ternos sobre a face do seu homem. Ele, distraído, não vê, mas talvez possa pressenti-los. Os dois ultrapassaram a juventude e deixaram para trás a paixão, essa bijuteria vistosa. Eles se amam.

E assim vou percorrendo uma a uma as nove esculturas hiper-realistas de Ron Mueck. O realismo técnico, embora impressionante, é acessório. O verdadeiro realismo está na capacidade de cada uma delas transmitir uma humanidade que nos penetra sem pedir licença, como a faca que penetrou o abdome do jovem negro de outra escultura: ele ergue a camiseta ensanguentada e examina aturdido a ferida, sem entender como a vida pode atingi-lo assim, tão profunda e inesperadamente.

Uma hora de pé na fila do lado de fora do MAM, a sala lotada de visitantes, mas vale cada segundo. Vale mais: vale o preço de uma ponte aérea, vale faltar a um dia ao serviço, vale ir sozinho. Só não vale não ir ver Ron Mueck no MAM do Rio.

Um comentário:

  1. Que bom que você gostou.
    Desfrutei os mínimos detalhes.
    Ouvi por onde andei, que ele não
    é muito ajustado, imagine se fosse.
    Abraços,
    Rosário

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